22 janeiro 2020

Meus 9 anos


Acordo no meio da noite. Esfrego os olhos. Respiro fundo. Caminho vacilante até a cadeira de vime que me dá guarida nas noites vazias.
É a voz dele, não tenho dúvida. O chapelão na cabeça . . .

     “ Sozinho de noite,
  nas ruas desertas
do velho Recife
       que atrás do arruado
    moderno ficou , , ,
criança de novo
   eu sinto que sou.”

“ Que diabo vieste fazer aqui, Ascenso ? “

Ascenso Ferreira !  Você aqui, Ascenso ?   A esta hora !  Perturbando minha alma . . .  Mexendo em meus sonhos . . .  Onde está a criança daquele tempo? Contemplando o nascer do sol na ponte Buarque de Macedo ou o luar prateado no Cais do Apolo ? E o adolescente que esperava ansioso o apito do cuscuz para tomar seu café ?  Quantas vezes fiquei sentado sobre a balaustrada da ponte, de pernas penduradas, pensando na vida ?  E as lembranças do adulto, da vida dura nas fábricas ?  . . . As viagens pelo interior, a colheita do algodão, a convivência com os homens do campo, a miséria crônica, a luta pelo desenvolvimento do Nordeste . . .   

“ O rio soturno
      tremendo de frio
               com os dentes batendo
        nas pedras do cais
     tomado de susto
    sem poder falar
    o rio tem coisas
      para me contar ”



É isso mesmo, Ascenso.  O rio tem coisas para me contar, Ascenso ! Hoje me lembrei que, quando completei oitenta anos, isto já faz muito tempo, escrevi o seguinte :

Madrugada Insólita
-- Amanhã vou colher a rúcula que plantei no  mês passado, usando uma semente que não podia ter nascido. Sua validade estava vencida há mais de dois anos. Mas a semente nasceu porque ignorou o seu prazo de validade. Eu também nasci, mas com prazo de validade não revelado. Vou fazer o que fiz com a semente: ignorar o prazo de validade e plantar-me a cada dia.                                                     

“Sozinho de noite
nas ruas desertas
                                                        o rio soturno
  nas pedras do cais
                                                        criança de novo
eu sinto que sou.”

“ Larga de ser vagabundo, Ascenso ”

Oxente ! ! !   O que foi que eu disse lá em cima ?  9 anos ?  Cruz credo !
Eu quis dizer 90 !  É pra lá que eu vou.