Na manhã úmida de Junho, o cheiro dos oitis se eleva do chão,
invade o espaço e ocupa o dia. Intenso e pungente afeta os sentidos, embriaga.
Na longa alameda os oitizeiros perfilados
desprendem seus frutos maduros e atapetam o chão. É a Rua Manoel Borba. São
seis horas da manhã. Um menino de doze anos percorre a longa via até alcançar a
Praça do Derby onde tem sua escola.* O cheiro dos oitis o acompanha. Ali faz
ginástica e toma café, preparando-se para um novo dia. Aulas pela manhã e
prática nas oficinas à tarde. Sairá dali como “mecânico de máquinas”, uma
redundância que significa torneiro mecânico, fresador e serralheiro. Era o ano
de 1942. Ele era o aluno mais feliz do
mundo.
Não posso dizer que a Rua Manoel Borba continua a mesma.
Recife não é mais o mesmo. Mas os oitizeiros ainda estão lá embora não tenha visto frutos pelo chão.
Talvez não seja a época, não sei, ou talvez estejam velhos demais para
frutificar. Acontece também com a gente. Mas a maior parte das casas – naquele
tempo eram mansões – também continua lá. O prédio da escola também, milagrosamente intacto. A mesma
entrada com portão de ferro, os mesmos ladrilhos no piso e a mesma árvore de
tronco enorme no pátio de recreio agora transformado em repartição pública.
Beirando as paredes da escola desfilava, majestoso, o Rio
Capibaribe. Poucos metros adiante uma gigantesca tamarineira e, logo depois, um
tambor de caldeira abandonado que teria, aos olhos de hoje, um metro e meio de
diâmetro. Ali morava o Zé da Cuia. Seria impróprio dizer que ele era um
mendigo, pois não pedia esmolas. Todos os dias ele recolhia uma parte da comida
que sobrava na cozinha da escola e isto lhe garantia a sobrevivência. Quase
todas as tardes pescava. Eu o ajudava a
estender as linhas e abastecer as iscas. Um dia contou-me sua vida. Falou das
dificuldades por que já havia passado,
do sofrimento e das agruras que o torturaram por muito tempo. Agora não.
Agora tinha casa e comida. Era um homem feliz. E para fechar o assunto
concluiu, pensativo:
-- É, meu amigo, eu já andei ruim de vida...
Ruim de vida! Aprendi muito com isso. As nossas insatisfações
crescem continuamente. Ansiamos ter. Quanto mais temos, mais queremos. E assim
vamos ao encontro da infelicidade. Hoje estou convencido de que existe alguma
coisa que se pode chamar de "felicidade relativa". Se pensarmos bem sempre
encontraremos uma felicidade relativa com a qual podemos nos acomodar. Como o Zé da
Cuia.
Não me censure, incauto leitor, se chegou até aqui esperando
encontrar algo que o emocionasse e só encontrou palavras ocas. Nada tenho para
acrescentar a não ser palavras e com estas me contento. Afinal, eu não tenho como lhe
transmitir o cheiro dos oitis.
*A Escola Técnica do Recife pertencia à rede federal de
escolas técnicas fundadas pelo presidente Nilo Peçanha. Oferecia dois tipos de
cursos, ambos com oito horas de aula por dia: o curso básico, de quatro anos,
que correspondia ao antigo ginasial e o curso técnico, de três anos, que
correspondia ao curso científico. Foi transformada em Instituto Tecnológico
e ocupa hoje um grande prédio em outro local. No antigo prédio, que se
conservou intacto até hoje, funciona a Fundação Joaquim Nabuco. Eu fiz, na
Escola Técnica do Recife, o curso básico de Mecânica de Máquinas. Ao terminá-lo
ganhei uma bolsa para fazer o curso técnico no Rio de Janeiro onde se acabava
de criar a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil.