Encontrei
um bilhete do Severino enfiado por debaixo da porta. Queria falar-me. Era
urgente.
Pressenti,
pela letra trêmula, que se tratava de coisa importante. Para estas ocasiões
sempre guardo um vinho especial e então sugeri que viesse à minha casa para comermos umas
tapiocas regadas a Tannat Viejo, do
Stagnari, ano 2000, numa celebração com os dois extremos da cultura
gastronômica.
Antes
mesmo de sentar-se Severino jogou sobre a mesa um pequeno livro. Tinha a
capa preta e nela se via a silhueta de
um homem em pé, de costas, que parecia olhar o infinito.
-- É sobre este livro? – perguntei-lhe.
-- É. Mas este não é um livro qualquer.
-- Quem é o autor?
-- Autora. Tatiany Araujo. É do
interior, como eu. Mas não do Nordeste,
é de Minas. Vale do Jequitinhonha. De uma cidade pequena como
Cabaceiras, na Paraíba , onde planto minha macaxeira.
Achei
o título estranho e, fixando a atenção
na expressão do seu rosto, perguntei ao
Severino:
-- Por que “O Jovem da Rua 4” ?
-- Porque não diz nada. É um enigma. Porque jovem é um jovem qualquer e
rua 4 é uma rua qualquer. “Apenas um poste no fim do beco”, como ela diz. Mas espere até ver o nome do personagem.
-- Como é, “O Homem de Preto” ? – brinquei.
-- Dã.
-- O que? Só isso?
-- “Um certo jovem de nome Dã”.
-- E o que a autora quer dizer com isso?
-- Nada. Simplesmente nada. Dã é a simplicidade ao máximo. É a essência,
a síntese. É o homem sem atributos. Com isto a autora consegue criar um
suspense digno do melhor escritor de romances policiais antes mesmo da leitura
ser iniciada. Trouxe este exemplar do livro pra você. Você vai conhecer um obra fascinante concentrada
em poucas páginas. O livro da Tatiany é denso. Ela não desperdiça palavras. Seu
estilo é sóbrio e elegante. É rico em metáforas, sempre bem construídas. A
descrição que ela faz do personagem, logo no começo do livro, é perfeita. É
precisa e coerente. Não há redundâncias. Olha a beleza deste trecho, com o qual
ela encerra o capítulo:
“Mal
percebia que, nesse deserto e em meio aos homens tão vazios, poderia encontrar num
silêncio ínfimo ... uma fagulha que, mesmo tenra, brilhasse ardente pelo fogo
agonizante produzido por sua própria chama.”
A
elegância do estilo é, sem dúvida, um aspecto a ser destacado na obra de
Tatiany Araujo. Não existem frases óbvias, clichês ou lugares comuns. Sua
linguagem poética seduz o leitor que crê estar lendo prosa. Veja isto:
“O
corpo com menos de sessenta quilos se levanta ainda embriagado pelo êxtase da
leitura, e se coloca de pé. Os olhos fundos voluntariamente se submetem a outros
ângulos. Observa o nada. Senta na cama. Coloca os pés pálidos e secos dentro
dos chinelos gastos pelos dias. Novamente em pé, vai até a cozinha, pega uma
faca e volta. O lápis havia se desgastado. Com força desnecessária descama-lhe
a ponta, preparando-o para mais um dia.”
Entusiasmado,
Severino continuava a ler trechos e falava sem parar. Eu, comovido, ouvia, os olhos pregados no livro.
--
Fascinante, Severino, não encontro outra palavra. A Tatiany viaja muito?
--
Não sei, não a conheço. Sei que mora nessa cidadezinha, que também não conheço.
Dizem que é muito tímida. Não deveria ser. Até agora escreveu poesias, este é o
seu primeiro livro em prosa. A princípio achei que fosse apenas um romance. Não
é. Nele você encontra verdadeiros
ensaios: sobre o comportamento humano, a formação da personalidade, a volúpia
da sociedade consumista, a religiosidade da alma. Tem tudo, e com exuberante
beleza. Quando trata da libido e da sensualidade ela o faz com muito calor mas com
educação e respeito. Ela descreve a explosão do desejo entre dois corpos com
tanta elegância e finura que parece estar recitando uma oração.
Severino
continuava a ler. Eu fechei os olhos. Sua voz foi se distanciando até
desaparecer. Eu vi a mulher de pele branca se contemplando no espelho... os
livros esparramados ... desenhos incompletos... a janela aberta e o chão lá embaixo...
Uma
longa viagem num espaço tão curto.