22 março 2012

As raízes do Severino


No dia 6 de Setembro de 2011 publiquei uma crônica no Blog  “Curta Crônicas” atendendo ao tema Sabores , proposto para aquela semana.
Dei-lhe o título de “Raízes” porque pretendia falar do aipim em confronto com a batata, na gastronomia, fruto de uma conversa que eu havia tido com uma colega durante o chopinho  que sucedia às nossas aulas. Para fazer graça, iniciei o texto falando das nossas raízes culturais  derivando, em seguida, para as raízes alimentícias. Como não tive muito sucesso na discussão com a minha colega, no meu empenho em defender a supremacia do aipim sobre a batata, na crônica resolvi carregar nas tintas invocando o meu amigo Severino Mandacaru. Escrevi:

“Severino aproveitou a abundância da safra de macaxeira para implantar uma fábrica de tapioca”... ... “Mandaria amostras para seus clientes na  Holanda, para onde já exporta a raiz “in natura”. Severino estava duplamente feliz: caso a oferta vingasse melhoraria sua renda e, consequentemente, o PIB do país, bem como aumentaria o valor agregado de nossas exportações”.

Para meu espanto, no sábado, dia 7 de Janeiro de 2012,  o  suplemento  “ELA GOURMET” de O Globo publica na capa, em página inteira:

“Mandioca levanta o PIB”
“Deu nos jornais: graças à mais popular e brasileira das raízes comestíveis do país, o Brasil fechou suas contas no azul. A Rainha do Brasil foi a salvação da lavoura”.
A matéria segue, na página interna: “ O aipim, ou macaxeira  ...  recentemente se encarregou de dar um providencial empurrãozinho no PIB  brasileiro. Na última safra nacional, segundo dados do IBGE, a brasileiríssima mandioca puxou os dígitos para o alto. Foi, literalmente, a salvação da lavoura”

Transcrevo a crônica completa, para algum incauto leitor:


RAÍZES

Nossas  raízes são a nossa cultura. Quero dizer, nossa cultura é produto de nossas raízes. Nossas raízes são o nosso caldo cultural. E é na sua base que tem origem a afirmação da nacionalidade. Através delas nos fixamos ao solo pátrio, fortalecemos nossa personalidade, garantimos nossa saúde e, imaginem, consolidamos a nossa economia, assegurando o equilíbrio da combalida balança de pagamentos do país. Nossos índios sobreviveram graças às raízes quando a pesca e a caça escassearam  -  desculpem o  pesqueacaçaescassearam , mas não vou refazer isso.

Há poucos dias eu conversava com meu amigo Severino Mandacaru, que acabava de voltar de Cabaçeiras, onde fora inspecionar suas plantações de macacheira e inhame, raízes que lhe dão o sustento.  Voltou entusiasmado porque o inverno, este ano, havia sido generoso em chuvas, duplicando a sua produção. Severino aproveitou a abundância da safra de macaxeira  para implantar uma fábrica de tapioca, esse milagre sensorial  -  ia dizendo “organoléptico”, mas ele não iria gostar - , proporcionado pela exuberante raiz. Mandaria  amostras para seus clientes na  Holanda, para onde já exporta a raiz “in natura”.  Severino estava duplamente feliz: caso a oferta vingasse, melhoraria sua renda e, consequentemente, o PIB do pais,  bem como aumentaria o valor agregado das nossas exportações.

Falei de  “organoléptico”, e fiz muito bem. Porque um dia destes eu me envolvi numa acalorada discussão com uma colega que  se dedica à gastronomia  explorando aromas e sabores com grande maestria. Estávamos num grupo de controlados abstêmios e tomávamos chá de cevada fermentada  quando minha colega, gentilmente, me ofereceu batatas fritas. Aceitei de bom grado, até porque gosto de batatas fritas mas confessei que preferiria aipim frito, para acompanhar a bebida.

-- Mas, por que aipim frito?

Expliquei-lhe que a razão da minha escolha era apenas um apego ideológico às minhas raízes.

--  Mas a batata é mais saborosa, disse ela.
--  Mas o aipim é mais saudável, retruquei. Não discutirei o gosto. O aipim    é superior em tudo. Você sabia que a batata se decompõe a partir de duas horas de cozida? Faça uma experiência: Deixe uma batata e um aipim ao ar livre. A batata apodrecerá e exalará um odor insuportável. O aipim mumificará, esperando a sua consumação pelos tempos.

--  Mas a batata é mais versátil, atacou ela astutamente.

--   Se vamos falar de versatilidade  o aipim ganha longe. Com a batata você faz um purê, essa mistura esdrúxula de amido e leite e, se você o comer, terá grandes possibilidades de passar o resto do dia aventando flatos alegremente. Com o aipim você também faz um purê, mas não precisa de leite para lhe dar consistência e sabor. Depois disso, além da pecaminosa batata frita, principal responsável pela maior parte da celulite das nossas donzelas, o que mais você pode fazer com a batata? Já sei, a batata rosti, esse repositório descomunal de gordura saturada, porque é feita com manteiga, do contrário não teria sabor. Das batatas ao vapor e das batatas coradas, versão lubrificada das primeiras, nem vale a pena falar. Ah!, sim você vai me falar da vichyssoise, mas eu pergunto: Vale a pena estragar um alho porró para fazer uma sopinha? Bem, agora você poderia me dizer que a fécula de batata é importante para engrossar o queijo do fondue. Certamente, mas ela é importante na  Suíça porque lá  só se planta batata. Aqui pode-se fazer isso perfeitamente com a goma de mandioca.

A essa altura, percebendo que minha arenga interminável havia impedido minha colega de se defender, comecei a me sentir mal. Mas,  ao fazer uma pausa, ela disparou:

--  Para,  para! Chega, você está me embromando! Prefiro discutir isto diretamente com o Severino.

--  Isso. Isso mesmo, fale com ele. Ele vai lhe explicar as vantagens do aipim frito e as virtudes do purê de aipim, da tapioca, do polvilho azedo para fazer o pão de queijo e do doce para pudins, do pé de moleque feito com massa puba, que não tem nada a ver com pé de moleque do sul feito de amendoim. E vai falar, também da jóia das sobremesas do Nordeste: o bolo Souza Leão. Severino lhe ensinará a comer farinha de mandioca com mel de engenho e lhe mostrará o montão de farofas que você pode fazer para o seu feijão. E a casquinha de siri? De que é feita alem do siri?  Farinha de mandioca!  Isto sim, minha musa, é que é versatilidade.

E assim, após algumas taças de chá,  notei que o meu bolodório não a convencia. Ela me fitava complacente, sem bater pestana. Encarei-a com brio, mas não consegui articular palavra. Queria dizer-lhe que eu não estava ali defendendo sabores mas tão somente por fidelidade ideológica às minhas raízes. Levantei-me e me despedi com um beijo fraterno.
Assim que a encontrar vou pedir-lhe  desculpas. E às batatas, também.


07 março 2012

Que milho é esse?


O milho ocupa um lugar preponderante  na alimentação do mundo ocidental. As populações rurais do norte da Itália sobreviveram a guerras e invernos graças à sua polenta. Na América Hispânica as tortilhas estão nas mesas todos os dias. Os índios da América Central consideram-no um alimento sagrado e a ele dedicam suas festas e seus rituais. Na vida moderna o milho ocupa um lugar de destaque graças à sua transubstanciação,  que resultou nesse milagre organoléptico a que demos o nome de “cereais matinais”.

Acompanhei, durante anos, a FISPAL, uma feira internacional de alimentação que se realiza  em São Paulo. A cada ano crescia  minha curiosidade por uma máquina que, verdadeiro milagre de sincronização de movimentos, cuspia, com grande velocidade,  saquinhos coloridos e perfumados. A primeira máquina que vi tinha cerca de 4 metros de comprimento. Ao fim de uma década, à custa de aperfeiçoamentos e inovações tecnológicas, alcançava mais de 20 metros.
Essa máquina produzia aquelas coisinhas deliciosas e crocantes que encantam as crianças e que mães e avós usam como instrumento de suborno. De formatos diversos e cores de fazer inveja ao arco-íris, elas vão desde os inocentes flocos de milho até uma imitação de batata frita, bolinhas com aroma de chocolate e chips com sabor torresmo. São todas feitas de milho.

No processo a farinha de milho é alimentada por uma tremonha situada na cabeceira da máquina. Passa por vários compartimentos, onde recebe doses indecifráveis de pós e líquidos que definirão o produto final. Já em forma de pasta é introduzida em  câmaras de cozimento e daí para uma extrusora / cortadora, que dará formato ao produto. A partir daí, abas, paletas, placas, helicóides e outras engenhocas tricoteiam saquinhos coloridos que caminham disciplinadamente para dentro das caixas, prontos para a expedição. Levam, no cangote, a mensagem: “Impossível parar de comer”

Tenho observado, no café da manhã, a avidez com que as crianças trituram aquelas bolinhas crocantes e ouço, consternado,  suas mandíbulas barulhentas. Na mesa não há frutas, não há sementes, não há raízes, não há pães, não há laticínios. Somente bolinhas e refrigerantes. Entre parentes e amigos sempre censurei mães e avós por contribuírem com  esse desmando. Só ganhei inimigos.

Finalmente, encontrei alguém – e não é um médico – que, com experiência, conhecimento e coragem, escancara as feridas dos nossos hábitos alimentares:
 Kenneth Rogoff, professor de Economia e Políticas Públicas na Universidade de Harvard e ex- economista chefe do FMI, em um longo artigo intitulado “Capitalismo Coronário” discute a necessidade de uma reforma no sistema capitalista atual e mostra que o problema transcende às questões ligadas ao sistema financeiro
Kenneth explica :
“Considere a indústria alimentícia e particularmente sua, às vezes, maligna influência sobre a saúde e a nutrição. As taxas de obesidade estão subindo em todo o mundo”.
O professor analisa, em seguida, a ligação entre a indústria alimentícia e  problemas mais amplos do capitalismo e estabelece  correlações entre obesidade, doenças cardiovasculares, câncer e expectativa de vida.
Por fim, Kenneth  Rogoff  apresenta-nos um diagnóstico contundente:

“Produtos alimentícios baseados no milho e com muitos aditivos químicos são reconhecidamente, um dos maiores indutores do ganho de peso; mas, de uma perspectiva convencional de contabilidade de crescimento, são uma grande coisa. O agronegócio é pago para cultivar o milho (frequentemente subsidiado pelo governo), e os processadores de alimentos são pagos para adicionar tonelada de químicos para criar um produto formador de hábito – desta forma, irresistível. Ao longo do caminho, cientistas são pagos para descobrir a melhor mistura de sal, açúcar e químicos para tornar o último alimento instantâneo viciante ao máximo; publicitários são pagos para criar interesse em torno dele; e a indústria farmacêutica faz uma fortuna tratando das doenças que dele inevitavelmente resultam.
 O capitalismo coronário é fantástico também  para o mercado acionário, que inclui companhias de todas essa indústrias. Alimentos altamente processados são bons também para criação de empregos, incluindo os de ponta em pesquisa, propaganda e saúde”


02 março 2012

Mais televisão


                                                     “A televisão é o ópio do povo”
                                                                                        Severino Mandacaru

Algum tempo atrás atribui essa frase a Karl Marx. Apresso-me a corrigir o engodo. Na crônica de mesmo nome, postada em 23 de Setembro passado, eu me propunha comentar os danos que a televisão de má qualidade causa às nossas crianças e adolescentes, para não falar dos pobres matutos das zonas rurais agora também com fácil acesso a esse prodígio da tecnologia.
Acontece que me enrosquei no cipoal das idéias e comecei a falar de crises financeiras, do uso doentio do  crédito bancário como responsável pela crise do capitalismo moderno e outros atrevimentos. Nem sequer toquei  no problema  da televisão e terminei a crônica com estas palavras:  “Mas eu ia falar da televisão e  a rima me atrapalhou. Não faz mal, fico devendo. Como nas moratórias.”

Fiquei devendo, mas nunca paguei. E não me arrependo, pois volto agora ao tema, consciente de que se tratava de uma tarefa acima das minhas forças. Porque Luis Fernando Veríssimo, na sua crônica “A arma”, publicada no dia 20 deste mês, com a maestria de sempre e sua notável capacidade de síntese, abarcou o assunto em poucas linhas:
“Nessa discussão sobre  baixarias na TV e a má qualidade generalizada do que vai ao ar, ninguém se lembra que toda casa brasileira” .... “ tem uma arma eficaz de autodefesa” .... “ o nome da arma é controle remoto.”

Veríssimo explica que o controle remoto é a ferramenta que nos permite exercer o livre arbítrio para defendermo-nos das agressões. “De procurar uma alternativa, outro canal, ou o silêncio. Em vez de dizer “isto deveria ser proibido” e incentivar, indiretamente, a censura, e negar o direito dos outros de gostarem de porcaria, deveríamos exercer, soberanamente, a liberdade de escolha do nosso dedão”.
Creio que divulgando os conselhos do Veríssimo cumpri a minha promessa. Sozinho eu não teria conseguido.