25 fevereiro 2012

Paraísos metafísicos

                                                                                      “A mesmice é o paraíso dos iguais”
                                                                                                                      Severino Mandacaru


Severino repetia essa frase com a solenidade de quem revela o segredo do Santo Graal. Nunca lhe dei atenção, porque nunca vi sentido naquela frase além de achar que aquilo era um pleonasmo. Por outro lado, por não saber direito o que é um pleonasmo, nunca me atrevi a questionar os seus conceitos.

Muitos copos se passaram. Um dia encontrei-o, solitário, num botequim vazio, e  resolvi provocá-lo:
- E o que se faz no paraíso dos iguais?
- Ora, tudo aquilo que não é diferente. É lá que se encontram os sinônimos, os análogos, os similares, os homogêneos, os invariáveis, os afins e as parelhas. É lá onde reina a harmonia e impera a salmódia. Lá você encontra a sensaborria,  e a rotina que desafia a ação do tempo. Isto para não falar dos isômeros, dos imutáveis, dos repetitivos, dos semelhantes, dos simétricos e dos monótonos. Lá floresce a tautometria e o ramerrão encontra seu curso. Mas sei que esta arenga toda não lhe interessa, meu amigo. Pelo que sei, você está mesmo preocupado é com a mesmice dos monótonos, não é mesmo?
- É verdade. Não tenho paciência com os repetitivos, os redundantes, os chatos, os enfadonhos. Em uma palavra: os mesmícimos!
- Não seja tão severo, meu amigo. Passei anos na caatinga cortando a maniva e sulcando a terra sáfara  que me daria o sustento. Dia após dia, sem descanso, sem domingos, sem férias, sem licença maternidade. No entardecer dos sábados eu me juntava aos caboclos para conversar e tomar umas Monjopinas  comendo  macaxeira frita em óleo de babaçu. Não havia vislumbres. Não havia perspectivas.  Não havia esperanças. Apenas monotonia ...  Sobre o que falávamos? Mesmice! Isso era ou não era mesmice? Você, com sua cabeça metafísica, dirá que sim. Agora, veja bem: em matéria de mesmice você precisa se cuidar. Não há melhor exemplo de mesmice do que o seu costume de querer ilustrar com um exemplo todo e qualquer assunto que se esteja discutindo. Aliás, quem me alertou sobre isso foi o Garcia Marquez. Você vive interrompendo as conversas com suas histórias chatas para mostrar que já viveu uma situação semelhante. Ninguém aguenta mais o seu bolodório repetitivo e maçante.

Baixei a cabeça, envergonhado. Eu não sabia o que dizer. Fitava o copo de cerveja enquanto suas palavras se repetiam na minha mente. No entanto percebi na última frase um ligeiro tremor em sua voz, sinal de que ele se havia dado conta de que tinha ferido o amigo.
- Sua cerveja está esquentando, Severino.
- É assim que eu a tomo, você bem sabe.  Aprendi com o Heineken.
- O que?
- O Wilen, um neto do Gehrard Heineken que instalou uma cervejaria em Amsterdan, no século dezenove. O Gerhard era um admirador de Mauricio de Nassau e vivia dizendo aos filhos que um dia montaria uma cervejaria em Pernambuco.
O neto me procurou. Queria visitar minha plantação de macaxeira no Brejo da Madre de Deus, que fica perto de Caruaru. Ele queria fazer cerveja a partir da mandioca fermentada. Sabia que os índios já faziam uma espécie de birita com isso.

Formou-se um novo silêncio. A digressão do Severino não havia conseguido dissipar a minha angústia pelas duras palavras ouvidas. Reabasteci os copos. Severino, indiferente a tudo, entre um gole e outro triturava o seu aipim. Sua insensibilidade me incomodava. Voltei a provocá-lo:
- Mas, se a mesmice é o paraíso dos iguais, como se chama o paraíso dos diferentes?
- Diferentice!

Era demais. Pensei em criticá-lo por inventar o neologismo mas, afinal, o que é mesmo um neologismo? Achei melhor dar-lhe corda, como o pescador que solta a linha para capturar o peixe depois de cansá-lo.
- E o que fazem na  diferentice?
- As maiores barbaridades! Tudo lá é desencontro. É desigualdade, é assimetria, é discrepância, é desconexão, é heterogeneidade, é desconformidade. É lá que se estuda a alotriologia. Lá se transgride. Lá se contesta. Rebela-se. Chuta-se o balde, entendeu? Eu vou lá pelo menos duas vezes por ano: no dia de Natal e no dia do meu aniversário. É lá que eu me reúno com os antônimos, com os divergentes, com os conflitantes, antagônicos e rebeldes. É lá que eu encontro o Augusto dos Anjos, e o João Cabral de Melo... Lá estão Edgar Alan Poe, Oscar Wilde e Bernard Shaw... Garcia Marquez... Neruda... Graciliano... Veríssimo... Millor...

A imagem de Severino começou a ficar embaçada. Sua voz,  cada vez mais tênue... mais tênue... , até desaparecer. Eu contemplava, lá embaixo, o espaço imenso, escuro, cheio de fantasmas.  E mergulhei na escuridão.

13 fevereiro 2012

O papel nosso de cada dia

Acabo de receber um livro que comprei pela internet. Foi editado em 1930. Procurei-o em um sebo porque eu o havia lido aos treze anos de idade e nunca mais havia ouvido falar dele. O papel é áspero e está amarelado pelo tempo, cheio de manchas escuras causadas, provavelmente, pela acidez do papel.
Tenho também um exemplar  da Divina Comédia em italiano, edição de 1811, em  formato pequeno, com 615 páginas. O papel é de um branco impecável, e nele se notam as ondulações dos cilindros que laminavam a pasta de celulose, tecnologia usada na época. São livros de papel. Merecem ser tratados com carinho. Porque o papel está sendo substituído.
A cada dia, livros e mais livros são editados em  telas de computador. Há quem diga que os livros de papel estão com os dias contados. Outros garantem que não. Não vou meter-me a discutir as vantagens ou defeitos de um e de outro, pois me falta preparo técnico para tanto. Umberto Eco, o grande filólogo, fez isso de maneira magistral em duas obras: “A memória vegetal” e “Não contem com o fim do livro”. No primeiro, ele explica como a humanidade registrou suas memórias desde o tempo do papiro e analisa a efemeridade do papel como meio para  preservar a informação. No segundo, escrito em parceria com Jean-Claude Carrière, escritor e roteirista de cinema, ele discute os méritos  do livro de papel em confronto com os meios  eletrônicos para a divulgação de textos. O resultado desse debate está contido no próprio título do livro.

Mas eu não vim aqui para chorar a morte do livro de papel, assunto que deixo para os filólogos. Eu vim chorar a morte do papel como papel. Porque o papel está sendo substituído. Na correspondência, onde se produziram notáveis obras literárias, as cartas não são mais de papel.
São telas de computador e não sei se estas conseguirão transmitir as esperanças, as angústias, os medos, as alegrias e as tristezas como uma  caligrafia trêmula, ou uma palavra borrada por uma lágrima caída sobre o papel conseguem transmitir à mulher amada, ao amigo distante, ao avô esquecido.

Boletins, editais, manifestos, concorrências públicas, propostas comerciais, teses de doutorado e até notas fiscais não são mais feitas em papel. Procure-as no  www.com  .
As cômodas e higiênicas bolsas de papel com as quais se faziam  compras no supermercado foram substituídas por sacolas de plástico. O dinheiro, que se chamava papel moeda, não é mais de papel. Foi substituído por um cartão de plástico ou por  números armazenados num servidor eletrônico. Nada contra. Mas rezo aos céus que me poupem dos raios e trovões, eles que já me destruíram uma árvore imensa e uma máquina de quase cem quilos de peso.

Não quero me alongar na busca de exemplos para a substituição do papel, pois não consigo conter minha ansiedade.
O que eu quero ver é como  vão substituir o papel higiênico.