16 dezembro 2010

Vou ali e já volto

Tenho pavor a despedidas. E quando parto para uma viagem, por mais curta que seja, começo logo a pensar na alegria da volta. Só assim consigo atenuar a tristeza que sinto ao afastar-me dos meus amigos. Gostaria que fossem comigo, temo perdê-los com a ausência. Fico imaginando os momentos de alegria que poderíamos compartilhar durante essa viagem, longe da rotina doméstica. Foi assim quando parti, ha algumas semanas, para cinco dias de devaneio em Buenos Aires.
O desconforto à bordo do avião não me permite maiores divagações. Servem-me um lanche numa tigelinha onde identifico uma espécie de salada cujo principal ingrediente são grãos de milho inteiros, felizmente cozidos. Nada mais adequado, penso eu. O lugar onde estou é a coisa mais parecida com aquelas gaiolas que usam para transportar galinhas. Não posso me queixar. Eu não sou mais do que um bípede depenado, como dizia Platão.
Desço no Aeroparque, aeroporto doméstico que eu não conhecia, próximo ao centro da cidade. Fantástico, em quinze minutos estou no hotel.
Buenos Aires está de mau humor. Não encontro mais aquela alegria que contagiava o turista. As pessoas correm pelas ruas falando ao celular em tom áspero, gesticulando nervosamente, desferindo com os braços golpes no ar. O atendimento nas lojas não é cordial como outrora e os garçons parecem mamulengos embalsamados.
Soçobrando entre medialunas e almendrados sinto falta do chopinho e das batatas fritas com os meus amigos do “ Depois da Oficina”. Vou para o Ateneu e parece-me vê-los esgueirando-se por entre os livros ou espalhados pelas frisas e camarotes. Vago pelo palco. Volta-me a nostalgia das aulas. Invade-me o afeto que surgiu daquela convivência desprovida de preconceitos e de vaidades. Quero levá-los ao “El Buller”, na Recoleta. Lá tem cerveja de verdade.
E poderemos rir e chorar.

                                                                   Severino Mandacaru

08 dezembro 2010

Aldenor vai a Recife

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Provavelmente quem leu a história da viagem ao aeroporto de Fortaleza com o Aldenor, e acreditou nela, achou que eu tive alguma participação naqueles acontecimentos bizarros. Engana-se. Porque, duas semanas depois o Aldenor veio ao Recife para dar continuidade ao nosso trabalho e hospedou-se em um hotelzinho de periferia, no lugar do Grande Hotel onde sempre ficava. No fim do último dia de trabalho eu o acompanhei até o hotel, onde ficamos tomando uma cerveja, na esperança de encontrar soluções para os problemas do sub-desenvolvimento do Nordeste. Quando saí, a lua apareceu , sorrindo. Sua imagem refletida no Cais do Apolo era entorpecente. Impossível ir para casa. Fiquei perambulando pelas pontes, contemplando as sombras dos edifícios refletidas na maré alta. A cidade ficou deserta. Decidido a ir para casa tomei o caminho da Ponte Buarque de Macedo.

Como um fantasma, caminhando lentamente, aparece o Aldenor, todo sorrisos.

-- Beduino, finalmente te encontrei!
-- O que houve, Aldenor, você não disse que ia dormir?
-- Perdi a carteira, os documentos, tudo. Não sei como pagar o hotel, não tenho dinheiro nem para o taxi. Você me arranja algum trocado?
-- Claro, mas o que é que você veio fazer aqui? Como ia me achar? Eu já devia estar em casa há muito tempo.

Aldenor baixou os olhos, colocou as mãos sobre meus ombros, e sussurrou:
-- Eu sabia que ia te encontrar!






05 dezembro 2010

Aldenor, o Messias

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Aldenor morava com cinco mulheres. A esposa, a mãe da esposa, uma irmã da esposa, uma sobrinha e uma enteada. Não tinha filhos. Todas o amavam, e o serviam, e o seguiam como se fosse um novo Messias enviado especialmente para redimir mulheres. Sempre magnânimo, Aldenor distribuía sorrisos, afagos, carinhos, amor no seu sentido mais elevado e, sobretudo, justiça. Morava num casarão colonial onde a harmonia preenchia todos os espaços.

Trabalhávamos juntos na Carteira de Crédito Industrial do Banco do Nordeste, em Fortaleza, na Rua Major Facundo, onde o jovem Severino curtia as noites com poemas, risadas e muita cerveja.
Minha base de trabalho era o Recife e eu viajava com freqüência para Fortaleza onde permanecia uma semana ou pouco mais. Eu me hospedava no hotel que ficava no final da rua Major Facundo, outrora aristocrático, mas que ainda conservava sua posição: de frente para o mar.
Certa ocasião o Aldenor me disse:
-- Galego, na próxima viagem você não vai para hotel. Vai ficar hospedado lá em casa.
Agradeci muito, não queria causar incomodo , essas coisas, mas não houve jeito. Ao desembarcar o Aldenor estava no aeroporto me esperando. Fiquei contente, até porque não conseguia esconder uma curiosidade mórbida: descobrir como é que ele administrava uma casa com cinco mulheres.
Solícitos ao estremo, tanto ele como sua esposa Maria desdobravam-se em atenções, cuidando dos menores detalhes para que eu me sentisse à vontade sem, contudo, exercer qualquer pressão. Cuidavam especialmente da cozinha. Entre as iguarias que a Maria preparava estava a paçoca, prato preferido do Aldenor. Embora tivesse esse nome a paçoca do Ceará não era a paçoca conhecida no sul, feita de amendoim e açúcar. Aquela era uma combinação de carne seca e farinha de mandioca socadas num pilão. Era usada pelos jangadeiros que saiam diariamente em busca de lagostas. Nós comíamos paçoca todos os dias. Estou exagerando. Não era todos os dias. Dos oito dias que passei lá só comi paçoca em sete deles.
Certamente a memória organoléptica do Aldenor não era das melhores porque certo dia, na hora do jantar, o único jantar em que a paçoca não compareceu ele virou-se para a esposa e disse:
-- Amôooor! Há quanto tempo você não faz uma paçoca, você poderia preparar amanhã, estou sentindo falta. E a paçoca retomou o seu curso.

Na véspera da minha partida – eu viajaria às seis horas da manhã – Aldenor declara:
-- Amanhã vou lhe deixar no aeroporto.
Recusei peremptoriamente:
-- Não vou permitir, vou chamar um taxi e...
-- Nada disso. Tomamos café com o bolo que a Maria fez...
-- Pior ainda. Não posso deixar que a Maria acorde a essa hora para fazer café, eu tomo no aeroporto.
A discussão não terminava, eu não conseguia persuadir o Aldenor. Eu me sentia realmente mal com o incômodo que estava causando e resolvi apelar para um argumento que causasse impacto. E saí com esta idiotice:
-- Escuta, você não pode me levar no aeroporto amanhã, sabe por que? Porque, para começar, vai chover durante a viagem, depois vai furar o pneu do carro e, se duvidar, você ainda é capaz de bater com o carro na volta.

O Aldenor não dirigia, só andava de taxi e, assim, na manhã seguinte o taxi estava na porta. Embarcamos em silêncio, eu ainda constrangido. A Maria nos acompanhava.
Chegamos, retiramos a bagagem e ficamos sob uma marquise, a dois metros do taxi, fazendo nossas despedidas. Depois do último abraço, quando já estava para sair, percebi que uma chuva fininha começava a cair.
Lembrei-me das bobagens que eu havia falado e não deixei por menos:
Está vendo, Aldenor, já começou a chover. Agora só falta furar o pneu...
--PPPPffffffff...fffff...ffff...fff...ff...f...!
Todos olharam para o carro a tempo de ver o pneu traseiro direito baixando...baixando...
Só me lembro da voz do motorista, perfilado ao longo de seu carro:
-- Que boca!
Encontrei o Aldenor quando veio ao Recife, duas semanas depois:
-- Você não sabe mas naquele dia, quando voltava do aeroporto, a chuva engrossou e um carro que vinha numa transversal derrapou, e quase nos acerta.

Sei que alguém poderá não acreditar nesta história. Não me ofendo por isso. Eu mesmo passei a vida me perguntando como foi que isso aconteceu. E se o escrevo é porque quero que fique registrado. Tenho medo de que um dia eu mesmo chegue a pensar que isso nunca aconteceu. Perguntem ao Aldenor.

Severino Mandacaru






02 dezembro 2010

Cada um com sua Lingua

... ou ... A Língua de cada um

- Como? Evadiste-te ?
- Evadir-me eu? Não sou parvo!
- Os assassinos deveriam levar alguma coisa que os identificassem...Uma papoila à botoeira!

Este é o diálogo que dá inicio a uma peça teatral de Sartre, na sua edição portuguesa, quero dizer, de Portugal. Imaginem a cena sendo representada no Brasil.

Gostaria de citar também um trecho da correspondência trocada entre Fidelino de Figueiredo (1), o grande filólogo português, e Sigismundo Spina, seu discípulo. Numa carta (2) ao Prof. Fidelino, que se encontrava em Lisboa e a quem chamava carinhosamente de “pai”, Spina relata um concerto ao qual assistiu no Teatro Municipal de São Paulo:
“O Prelúdio em Si Menor, de Bach, conquanto Stokowski metesse nele as garras, foi primorosamente executado.” ... ... “o pai se lembra, deve estar isso em “Lisboa de Ontem” - se não me engano - daquela nota de Garret- por ocasião da representação de “A Sobrinha do Marquês” ? Deviam ser os Castristas que, a certa altura, assuando a peça, ouviram a exclamação de Garret do alto do seu camarote:
“Pateiem, bárbaros!”
“Pois bem: foi o que me evocou o público que estava presente ao concerto:
“Quanta patada!”
No mesmo texto encontramos ainda: bolseiro, carota, canastro, extenderete, casal saloio. Não é divertido?

Estamos no Rio de Janeiro. Marques era um técnico em indústria têxtil que foi trazido de Portugal quando eu trabalhava na Fábrica Bangu daqueles tempos. Enquanto a fábrica lhe arranjava a um lugar para morar ele ficou hospedado na minha casa. Eu, ainda solteiro, havia contratado a Ivete, uma esbelta morena que era porta estandarte de um bloco local, para cuidar da casa.
Ivete limpava e arrumava tudo, preparava o almoço e o jantar, mas não dormia no emprego. E o Marques dizia:
- Oh, Ivete! Não deitaste cebolas na salada, pois não?
- Oh, Ivete, que fizeste das minhas piugas? Não as vi, esta manhã.
- Que raios preparaste para o jantar, oh! Ivete? É isto um sarrabulho, dizes . tu? Parece mais uma champana!
Ivete o olha espantada, cai na gargalhada, e dá de ombros.

Eu tomava cerveja regularmente, na hora do jantar. Sempre a oferecia ao Marques e ele sempre a recusava. Um dia perguntei-lhe:
- Marques, por que você não toma cerveja?
- Porque não gosto, pois. - a perfeita lógica lusitana deixou-me encabulado.
- Mas por que você não gosta? - insisti.
- Não me sabe bem. - Eu já me sentia derrotado. Tentei um último golpe:
- E por que não te sabe bem?
- Porque é muito amarga.
- Ah! - gritei triunfante. Se é por isso resolve-se facilmente.
- Oh! Ivete, corre lá embaixo e traz uma Malzbier para o Senhor Marques.
Sirvo-lhe a cerveja doce. Marques bebe um gole e eu esqueço o assunto. Ele termina o jantar, retira-se e eu permaneço sentado digerindo os meus pensamentos.
Ivete chega para tirar a mesa. Vê o copo de Marques ainda cheio e pergunta:
- Ué, o Seu Marques não gostou da cerveja?
- Não Ivete, pode retira-la.
E a Ivete, colocando as mãos na cintura, balançando aqueles quadris que Deus lhe deu:
- Eu, hein, é a primeira vez que eu vejo um português enjeitar preta!

Esta é a língua portuguesa. É a língua de todos nós. Ou é a língua de cada um?
Então vamos ver como falam os Severinos de Pernambuco e os Raimundos do Piauí. São apenas frases soltas, mas são suficientes:
“Se avexe, menino. Fica aí encangando grilo o tempo todo, vai chegar atrasado outra vez.”
“Ele é rico que só! Dá de um tudo pra mulher dele e ainda sobra pra rapariga.”
“Arrodeia o oitão que você vai encontrar a bica que está com o pitoco quebrado”
“Fique aqui com estas flores, que eu vou ter que sair. Quando os noivos passarem,  você avôa em cima deles.”
“Tenha vergonha, seu safado! Mulher de homem não se amulega!
“Você vem me falar de moral? Você, que passa a noite chumbregando com piniqueiras?

Não quero encerrar estes rabiscos sem dar mais um exemplo da linguagem do Nordeste. É a simples estrofe de uma canção gravada por Volta Seca, um capanga de Lampião:

“Se eu soubesse que eu chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem”

Pois é, nem a praga da televisão que, como disse Marx, é o ópio do povo, conseguiu aproximar as três línguas. E eu aqui, queimando a mufla, pra descobrir se auto estima é junto ou separado, se tem hífen ou não, se hífen, alem de um “n” estranho tem acento ou não, se ambígua perdeu o trema, se....
Ora, francamente!

(1) Fidelino de Fgueirdo , grande filólogo português, professor de literatura, foi contratado em 1938 pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo para modernizar os estudos superiores de literatura.

(2) “Cartas de Fidelino de Figueiredo e de Sigismundo Spina” - Ateliê Editorial: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2009 – pg.58

EM TEMPO:
Escrevi o desabafo acima já faz tempo, embora só o tenha postado recentemente.
Encontrei agora, no jornal “Rascunho” de Novembro de 2010, na seção “Cartas”,
um outro desabafo, escrito por José Ignacio Coelho Mendes Neto:

“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país Estão de parabéns!"
  *José Ignacio Coelho Mendes Neto