... ou ... A Língua de cada um
- Como? Evadiste-te ?
- Evadir-me eu? Não sou parvo!
- Os assassinos deveriam levar alguma coisa que os identificassem...Uma papoila à botoeira!
Este é o diálogo que dá inicio a uma peça teatral de Sartre, na sua edição portuguesa, quero dizer, de Portugal. Imaginem a cena sendo representada no Brasil.
Gostaria de citar também um trecho da correspondência trocada entre Fidelino de Figueiredo (1), o grande filólogo português, e Sigismundo Spina, seu discípulo. Numa carta (2) ao Prof. Fidelino, que se encontrava em Lisboa e a quem chamava carinhosamente de “pai”, Spina relata um concerto ao qual assistiu no Teatro Municipal de São Paulo:
“O Prelúdio em Si Menor, de Bach, conquanto Stokowski metesse nele as garras, foi primorosamente executado.” ... ... “o pai se lembra, deve estar isso em “Lisboa de Ontem” - se não me engano - daquela nota de Garret- por ocasião da representação de “A Sobrinha do Marquês” ? Deviam ser os Castristas que, a certa altura, assuando a peça, ouviram a exclamação de Garret do alto do seu camarote:
“Pateiem, bárbaros!”
“Pois bem: foi o que me evocou o público que estava presente ao concerto:
“Quanta patada!”
No mesmo texto encontramos ainda: bolseiro, carota, canastro, extenderete, casal saloio. Não é divertido?
Estamos no Rio de Janeiro. Marques era um técnico em indústria têxtil que foi trazido de Portugal quando eu trabalhava na Fábrica Bangu daqueles tempos. Enquanto a fábrica lhe arranjava a um lugar para morar ele ficou hospedado na minha casa. Eu, ainda solteiro, havia contratado a Ivete, uma esbelta morena que era porta estandarte de um bloco local, para cuidar da casa.
Ivete limpava e arrumava tudo, preparava o almoço e o jantar, mas não dormia no emprego. E o Marques dizia:
- Oh, Ivete! Não deitaste cebolas na salada, pois não?
- Oh, Ivete, que fizeste das minhas piugas? Não as vi, esta manhã.
- Que raios preparaste para o jantar, oh! Ivete? É isto um sarrabulho, dizes . tu? Parece mais uma champana!
Ivete o olha espantada, cai na gargalhada, e dá de ombros.
Eu tomava cerveja regularmente, na hora do jantar. Sempre a oferecia ao Marques e ele sempre a recusava. Um dia perguntei-lhe:
- Marques, por que você não toma cerveja?
- Porque não gosto, pois. - a perfeita lógica lusitana deixou-me encabulado.
- Mas por que você não gosta? - insisti.
- Não me sabe bem. - Eu já me sentia derrotado. Tentei um último golpe:
- E por que não te sabe bem?
- Porque é muito amarga.
- Ah! - gritei triunfante. Se é por isso resolve-se facilmente.
- Oh! Ivete, corre lá embaixo e traz uma Malzbier para o Senhor Marques.
Sirvo-lhe a cerveja doce. Marques bebe um gole e eu esqueço o assunto. Ele termina o jantar, retira-se e eu permaneço sentado digerindo os meus pensamentos.
Ivete chega para tirar a mesa. Vê o copo de Marques ainda cheio e pergunta:
- Ué, o Seu Marques não gostou da cerveja?
- Não Ivete, pode retira-la.
E a Ivete, colocando as mãos na cintura, balançando aqueles quadris que Deus lhe deu:
- Eu, hein, é a primeira vez que eu vejo um português enjeitar preta!
Esta é a língua portuguesa. É a língua de todos nós. Ou é a língua de cada um?
Então vamos ver como falam os Severinos de Pernambuco e os Raimundos do Piauí. São apenas frases soltas, mas são suficientes:
“Se avexe, menino. Fica aí encangando grilo o tempo todo, vai chegar atrasado outra vez.”
“Ele é rico que só! Dá de um tudo pra mulher dele e ainda sobra pra rapariga.”
“Arrodeia o oitão que você vai encontrar a bica que está com o pitoco quebrado”
“Fique aqui com estas flores, que eu vou ter que sair. Quando os noivos passarem, você avôa em cima deles.”
“Tenha vergonha, seu safado! Mulher de homem não se amulega!
“Você vem me falar de moral? Você, que passa a noite chumbregando com piniqueiras?
Não quero encerrar estes rabiscos sem dar mais um exemplo da linguagem do Nordeste. É a simples estrofe de uma canção gravada por Volta Seca, um capanga de Lampião:
“Se eu soubesse que eu chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem”
Pois é, nem a praga da televisão que, como disse Marx, é o ópio do povo, conseguiu aproximar as três línguas. E eu aqui, queimando a mufla, pra descobrir se auto estima é junto ou separado, se tem hífen ou não, se hífen, alem de um “n” estranho tem acento ou não, se ambígua perdeu o trema, se....
Ora, francamente!
(1) Fidelino de Fgueirdo , grande filólogo português, professor de literatura, foi contratado em 1938 pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo para modernizar os estudos superiores de literatura.
(2) “Cartas de Fidelino de Figueiredo e de Sigismundo Spina” - Ateliê Editorial: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2009 – pg.58
EM TEMPO:
Escrevi o desabafo acima já faz tempo, embora só o tenha postado recentemente.
Encontrei agora, no jornal “Rascunho” de Novembro de 2010, na seção “Cartas”,
um outro desabafo, escrito por José Ignacio Coelho Mendes Neto:
“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país Estão de parabéns!"
*José Ignacio Coelho Mendes Neto