22 setembro 2010

DE APLAUSOS E DE VAIAS



O aplauso do blogueiro é o comentário.
Num teatro onde se representa qualquer coisa a platéia costuma se manifestar aplaudindo, quando gosta, ou vaiando, quando não gosta, o que vê. Tem sido assim desde a tragédia grega até os cantadores do Nordeste. Em muitos casos, o público alcança um grau tal de entusiasmo que aplaude em cena aberta, obrigando os atores a suspender a representação, mantendo-se congelados em suas posições. Na ópera isto é muito comum quando o tenor ou a soprano terminam uma ária mais difícil. Dependendo da intensidade dos aplausos e dos gritos de bis...bis... o cantor retribui com uma repetição da ária.

Mas nem sempre há aplausos. Também há desaprovações. Muitos tenores foram vaiados em cena aberta por desafinarem e disto não escapou nem o grande Pavarotti num dia em que sua goela o traiu, no Scala de Milão.

Os aplausos e as vaias são, para os atores, a bússola que os orienta e os incentiva a prosseguir – ou não – no seu trabalho. Pessoalmente sou contra os apupos e vaias. Pode-se deixar de aplaudir algo de que não se goste mas vaiá-lo é uma violência que desonra o ser humano..

Para o blogueiro que transpira na labuta quotidiana extraindo das entranhas palavras e pensamentos na esperança de levar ao seu leitor um pouco de qualquer coisa que o faça pensar, rir, chorar, sonhar, dormir, xingar, lamentar ou seja lá o que for, merece também um aplauso, uma desaprovação, ou seja lá o que for.

Porque o aplauso do blogueiro é o comentário

Mas não se assuste caro colega se os comentários que você receber nem sempre lhe forem favoráveis Vou mostrar-lhe o que Millor Fernandes, o grande Millor, recebeu quando estreou a peça “Um Elefante no Caos”, em Julho de 1960:

1 - “Um Elefante no Caos”, simplesmente não é teatro” - Van Jafa, no Correio . da Mãnhã

2 – “Millor é um individualista pré marxista, preso a um sistema ético-familiar.” – . Paulo Francis, no Diário de Notícias.

3 – “O enredo nada tem de interessante.” – Brício de Abreu, no Diário da Noite.

4 – “Conseguiu Millor Fernandes uma coisa dificílima; transportou para o palco . sua seção humorística de “O Cruzeiro”. – Zora Seljan, O Globo

Acho, também, que você não deve se amofinar por ter escrito, alguma vez, alguma bobagem. Grandes escritores já escreveram grandes bobagens. Console-se, por exemplo, com esta pérola escrita pelo admirável Oscar Wilde:

“Não gosto dos atuais livros de memórias. Em geral são escritos por pessoas que esqueceram completamente tudo o que viveram ou então não fizeram nada digno de lembrança”

Quanto a mim, estou orgulhoso. Soltei as amarras. Comecei minha carreira de crítico descendo o sarrafo no Oscar Wilde.
Finalmente, considerando que nos dias de hoje todo mundo anda extremamente ocupado, resolvi apresentar uma coleção de comentários pré-fabricados que facilitarão o leitor, anônimo ou não, a fazer sua crítica. Não precisa nem ler a matéria. Muitos deles se ajustam a qualquer tema. È rápido. Basta clicar: Copiar / Colar.

Estão separados em duas categorias: na primeira estão comentários já usados, extraídos de blogs existentes, portanto autênticos. Destes, alguns foram recondicionados ou receberam pequenos reparos, outros apenas retoques de pintura.

A segunda categoria apresenta comentários novinhos em folha – para quem não gosta de mercadoria usada.

COMENTÁRIOS SEMI-NOVOS

1 - Será que crônica tem a ver com a indignação do cronista?

2 - Gostei do seu texto!

3 - Seu texto está muito bem escrito mas não me parece uma crônica.

4 - Desculpe, senhor cronista, mas o senhor é um chato.

5 - Somente, do meio para o fim é que achei que estava lendo uma crônica.

6 - Bem escrito mas completamente fora do tema.

7 - Parece que tem o dom de descrever o universal, mas ficou confuso.

8 - Estava gostando muito no início mas quando comecei a ver a série de . . . palavras terminadas em “inhos e inhas” cortou o meu baratinho.

COMENTÁRIOS NOVOS EM FOLHA

1 – Sua crônica é chocha mas bem escrita.

2 – Li, pacientemente, a sua crônica.

3 – Parabéns! Tente novamente.

4 – Caro cronista: você diz que é um incompreendido. Já tentou escrever para os internos de um manicômio?

5 – Gostei da sua crônica. Ela me faz rir.

6 – Nunca li um parvo. Abri uma exceção para você.

7 – Escrevi um comentário tão maluco quanto a sua crônica. Por isso não ouso publicá-lo.

8 – Linda, a sua crônica, lembra-me o quadro “Guernica”, de Picasso..

9 – Sua crônica está saborosa. Vou comê-la com meus amigos, acompanhada de muita cerveja e batatas fritas.

10 – Absit injuria verbis.

11 – Fui induzido a ler os seus Hái- Kais. Comparo o suplício a que fui submetido com o de uma galinha condenada a bicar micro-partículas de fubá em lugar de grãos de milho.

16 setembro 2010

BEM ESTÁ O QUE BEM ACABA

Do alto da Vila Maria até a margem do rio Tietê caminhava-se meia hora. Alcançava-se, pela margem direita, à montante do rio, um lugar onde se formava uma pequena enseada. A areia acumulada pela correnteza na curva do rio sugeria uma pequena praia, abruptamente interrompida por um barranco com cerca dois metros de altura. Nesse ponto o rio era profundo e ali fazíamos nossos mergulhos e “saltos ornamentais” dos quais saíamos, freqüentemente, com os costados em brasa. De vez em quando escapávamos todos de casa - éramos uma patota de cerca 15 moleques entre os 8 e os 14 anos - e íamos tomar banho no rio sem avisarmos nossas mães, obviamente. Não é preciso dizer que tomávamos banho completamente pelados. Em ambas as margens do rio o matagal era denso. Deixávamos a nossa roupa amufumbada no meio das moitas. Cada um sabia exatamente qual era sua posição. Um dia foi muito especial no nosso balneário. Fizemos apostas para ver quem teria a coragem de atravessar o rio, sabendo que a volta também teria que ser a nado. Ninguém se atreveu. Eu andava aí pelos onze anos. Não queria fazer feio. Demorei para tomar a decisão. Era preciso avaliar a força da correnteza para calcular onde eu iria parar na outra margem e, a partir daí, escolher o ponto de saída. Atirei-me. Alcancei a outra margem no lugar previsto, mas não esperava encontrar uma macega de juncos que me dificultava o acesso à terra firme. Faltava menos de dois metros e eu não conseguia me desembaraçar. O pavor, talvez, da morte, deu-me alento e, num impulso desesperado, alcancei o solo. Exausto, ofegante, enquanto descansava, fiquei observando aquela correnteza que poderia ter levado consigo o meu triunfo. Fiquei com medo de voltar. O tempo passava e eu sonhava. E o tempo passava. Não havia saída. A volta ao bairro pela outra margem era impensável. Fiquei olhando os garotos do outro lado, esperando deles uma palavra de apoio. Imaginei que o meu heroísmo desencadearia gestos de solidariedade, gritos de incentivo, apelo aos santos, qualquer sinal de vida. Estavam todos entretidos em seus mergulhos, rindo, gritando e muitos retornando, sem olhar para trás. Nada. Ninguém sequer me notava. Abandonado! Lancei-me na água com toda a fúria e consegui alcançar a outra margem no centro exato da enseada. Quando cheguei não havia mais ninguém na pequena praia. Ainda vi, pelas costas, o último menino enveredando pela trilha que conduzia ao centro do bairro. Contemplei, triunfante, o rio Tietê, com um misto de medo, orgulho e imensa alegria. Fui em busca da minha roupa. Encontrei o lugar vazio. Entrei em desespero. Não podia atravessar o bairro nu em pelo. Eu nada podia fazer a não ser chorar. E foi entre soluços que consegui divisar a silhueta de um dos meninos, meu vizinho de casa, que se aproximava. Trazia umas cartas de baralho na mão. - Luis, estas cartas não são tuas? As que a gente usa pra jogar? Eu encontrei espalhadas no caminho. E, vendo-me nu: - Roubaram a tua roupa, è ? Foi por isso que jogaram as cartas fora! - Toninho, que sorte que você voltou! Corre lá em casa e pede a minha mãe pra mandar uma roupa. O Toninho se aproximou da casa cheio de precauções e encontrou minha mãe no portão da rua, aflita, olhando o infinito, à espera do filho. Aproxima-se, hesitante, e gagueja: - Dona Terezinha... Dona Terezinha... né... o Luis... né... foi tomar banho no rio...né... Dona Terezinha desabou no chão de terra. Toninho deixou minha mãe entregue aos cuidados do meu irmão mais velho, sob os impropérios deste, e trouxe-me as roupas que me aqueceram a alma. E eu atravessei o bairro, altivo e exultante, sem me dar conta do desespero que havia criado em casa. Quando cheguei encontrei minha mãe sentada na sua cadeira, imóvel, seus grandes olhos negros fixos no espaço. Sem desviar o olhar ou dizer uma só palavra puxou-me pelos ombros e apertou-me com força contra seu peito. E eu senti a dor do amor. Uma dor que eu sinto até hoje. Luigi Spreafico

04 setembro 2010

SEVERINO MANDACARU



















CARUARU - Pernambuco








SEVERINO MANDACARU

por Luigi Spreafico

Eu canto eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto glosa e repente
E galope à beira mar...


Severino Mandacaru é uma contrafação de si mesmo. É uma vida em conflito. Um retirante às avessas.
Remando contra a corrente, Severino abandona São Paulo em busca de Toritama onde irá conhecer os frutos da caatinga: caveiras de gado calcinadas pelo sol, protegidas pelos espinhos do mandacaru.
Aos doze anos de idade, em São Paulo, Severino enfrenta, todas as manhãs, a garoa fria que lhe congela a alma. Desce do alto da Vila Maria e percorre, a pé, os três quilômetros que o separam do ponto final do bonde 34. Vila Maria!
Viaja sempre no estribo. O bonde dispara, corta a várzea com seus campos de futebol, atravessa a pequena ponte de madeira, sobe a Rua Catumbi, dobra na Celso Garcia, atravessa o Belenzinho e monta sobre a Avenida Rangel Pestana. Está na Praça da Sé. Severino se encaminha para o seu trabalho. Reduz os passos. Detêm-se, pensativo, observando os artesãos portugueses esculpindo nas pedras o que um dia será a catedral de São Paulo. Na vastidão da praça vazia, parece-lhe contemplar uma cena do Paraíso. Colunas, capitéis, volutas, troncos de anjo, formas mágicas, harmoniosas, construídas apenas com um martelo e uma talhadeira. Assombra-se. São todos Michelangelos, são enviados de Deus! Alguns são seus vizinhos no Alto da Vila Maria. Ajuda-os a construir suas casas pisando o barro que rejuntará os tijolos. Severino aprendeu a falar o português do Além Tejo, de Trás os Montes, da Cabidela. Divide com eles o caldo verde.
Encaminha-se para o escritório onde trabalha. Imprime no mimeógrafo as cartas que deverá entregar. Coloca-as, cuidadosamente, nos envelopes e parte para a jornada que o deixará com os pés em brasa. Nunca voltou uma carta sequer.


Já viajei por muitas terra
Já chupei muito cajá
Namorei loura e mulata
Branca preta e sarará
Mulhé nenhuma eu enjeito
Basta sabê me agradá

O pau de arara que transportou Severino na sua invertida retirada era um navio da Costeira. Parte de um comboio de oito navios cargueiros, quatro corvetas de guerra e sobrevoado por um dirigível, levou dezoito dias entre Santos e Recife. No porto, Severino não entende a língua que falam, mas tem sua atenção atraída pela balaustrada do cais: enormes blocos de mármore português, de um vermelho intenso entrecortado por veios lilases. Nota os sinais da erosão produzida pela brisa marinha através dos séculos.

Escola e trabalho foram moldando aquele sertanejo improvisado que não tinha, evidentemente, nem a energia nem a perseverança dos nativos, qualidades que viria a desenvolver com o tempo, à custa de muito esforço. Trabalho penoso nas fábricas, conflitos de cultura, o calor insano a causticar-lhe a pele, o pôr-do-sol no cais de Santa Rita, a lua cheia no Cais do Apolo, a poesia de Ascenço Ferreira, os frevos de Capiba, as peças de Ariano Suassuna, as palavras incentivadoras de Francisco Brennand, o chope no bar Savoy em companhia de Carlos Pena Filho foram consolidando um Severino empenhado em viver a vida como a vida lhe era oferecida.
Em Fazenda Nova, não distante de Caruaru, Severino conhece os escultores que moldam a cidade de Nova Jerusalém. Novo encantamento. Como os Michelangelos da Praça da Sé, matutos analfabetos, sem ajuda de qualquer instrumento que não seja o martelo e a talhadeira, extraem da rocha esferas com precisão milimétrica, estátuas de santos e de pecadores, madonas e bambinos, onças , macacos, araras, - e a imagem do Padre Cícero.

Severino viaja. Em Codó, no interior do Maranhão, apaixona-se pela trapezista de um circo mambembe que ancora na praça da Igreja. Contemplando seu corpo escultural, pensa: Trapezista? Deve ser aquela moça que desfila de maiô no começo e no fim do espetáculo. Rufar de tambores: ela aparece, toma o trapézio, é elevada a uma altura de quinze metros e dá um salto triplo – sem rede de proteção. Severino contrai os esfíncteres e desmaia.
Um jovem atirador de facas dispara seus dardos contornando a silhueta de uma bela mulher encostada a um biombo, com os braços abertos em forma de cruz. É sua mãe. Um palhaço acaba de levar uma martelada no dedo quando se prepara para entrar em cena. O pranto que simula na comédia que representa é autêntico.
O convívio com o circo ensinou a Severino como a vida pode ser bela. E cruel. Os deslocamentos por estradas lamacentas do interior, caminhões atolados, o sanfoneiro que tomou um porre e não apareceu, os cuidados do pai com a segurança da filha. Um mundo complexo que não encontrava nos manuais escolares.

Moço distinto se achegue
Meu canto é pra si iscutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná

Em Teresina - PI Severino entra na fábrica rigorosamente às 5:30 da manhã. Sai às 8:00 da noite. Seu jantar é um litro de sorvete de bacuri. Dorme na rede molhada para suportar o calor no quarto do hotel que o abriga construído antes da invenção do ar condicionado. Nas manhãs de domingo frequenta a praia formada pela coroa de areia na margem do preguiçoso Rio Parnaíba. A praia denomina-se “ Praia da Croa”. Seguindo a tradição local, Severino funda o “Croa Crawl Crube”, no qual espera treinar as nadadoras de canelas finas com seus lamentavelmente pouco decotados maiôs.
O escasso lazer do domingo não esconde a amargura que o aflige. A penúria das condições de trabalho na indústria e na lavoura levam-no a reflexões insensatas. Um dia tudo há de mudar.

Fortaleza é um mundo diferente. Severino pratica halterofilismo nas areias da praia de Iracema, já comprometida pelo avanço do mar. Almoça lagosta no restaurante do François, não porque fosse fanático por esse prato mas porque não havia outra coisa. Nas noites de boemia, como o bom frade que leva o evangelho para as suas paroquianas, Severino recita poesias para as mariposas no meretrício da Rua Major Facundo. Em surdina, boleros de roedeira completam o quadro romântico.
O contato com a miséria no bairro do Pirambu abala ainda mais as suas combalidas convicções políticas. Sente-se um covarde, um cúmplice, um acobertador. Não pode enclausurar-se. É preciso buscar.

Pernambuco, década de 60. As Ligas Camponesas incendeiam canaviais. Greves nas fábricas tumultuam o setor produtivo. Emboscadas matam gentes.
O golpe militar interrompe os estudos já tardios de Severino. O uivo das sirenes dos carros militares na caça às bruxas torna-se insuportável.
Severino emigra. Leva consigo pouca coisa: um pôr de sol do Rio São Francisco, o cheiro dos oitis nas manhãs úmidas da Boa Vista, o apito de uma fábrica, uma tapioca da dona Joana, o choro sufocado do menino Ambrósio, um disco de Volta Seca e uma garrafinha de licor de genipapo.
Deixa muitas saudades.

Si o que eu to vendo é verdade
Si num mi falha os olhá
Tanto dinheiro na cuia
Nunca mais hei de juntá
Moço distinto obrigado
Deus lhe há de arrecompensá


Faltando poucos meses para completar oitenta anos de idade, Severino está renascendo. E deve o seu retorno à vida aos colegas da Oficina e ao menino Felipe Pena, seu professor, competente e magnânimo.
À Roberta Bomtempo e ao Miranda, Severino deve tudo isso e muito mais. Porque, com seu carinho e seu apreço, despertaram nele emoções há muito esquecidas e o impregnaram de uma energia mágica: a energia que move o sol e todas as estrelas: a sensação de estar vivo.


Notas:
1- As expressões “retirante às avessas” e “remando contra a corrente” são versos de João Cabral de Melo Neto em “ Morte e Vida Severina”.
2- Os versos do cantador foram escritos há alguns anos e fazem parte de um conto chamado “A Centenária”
3- Toritama é a cidade do interior de Pernambuco para onde se dirige Severino de Maria quando encontra o corpo de Severino Lavrador, que morreu de morte matada. De “Morte e Vida Severina”
4- A frase “energia que move o sol e todas as estrelas” é uma adaptação dos versos de Dante, na Divina Comedia: “L’amor che tutto muove. L’amor che muove Il sole e le altre stelle”