Quem percorresse a pequena estrada de terra batida que ligava Recife a Olinda, chegando ao Varadouro, seria surpreendido pelo cheiro pungente de goiabas e cajus. Ali, bem cedo, caboclos curtidos pelo sol, sentados junto aos seus balaios, esperavam que a Fábrica de Doces abrisse as portas para entregar sua mercadoria. O amarelo vibrante das goiabas e o vermelho sanguíneo dos cajus lembravam um quadro de Van Gogh.
O forte aroma das frutas na manhã úmida inundava o quarteirão e embriagava os sentidos para o resto do dia. Ao cair da tarde, um outro cheiro, ainda mais forte, emanava do prédio da fábrica indicando que a goiabada estava pronta. E este perfume, este sim, ficaria impregnado pelo resto da vida.
No Varadouro a estrada embicava para a esquerda, tornando-se estreita, e partia em direção à cidade de Paulista. Um nome simplório, para a cidade que era: duas grandes fábricas de tecidos, duas longas chaminés enfeitiçando o céu. A Igreja, a Maternidade, o Hospital, a Funerária, o Cemitério. Doze mil operários. Quatro teares por tecelã. E um dono: o Coronel.
O Coronel tinha muitas esposas e cada esposa tinha muitos filhos. O Coronel a todos provia e de todos cuidava, porque todos constituíam a sua família. Os filhos estudavam na Suíça ou na Alemanha conforme o gosto de cada um.
O Coronel construíra um império empresarial que não se limitava àquelas duas fábricas. Tinha também fábricas na Paraíba e em Minas Gerais, todas gigantescas. E duas redes enormes de comércio varejista: As Casas Pernambucanas no Sul e as Lojas Paulista no Nordeste.
As terras do Coronel ocupavam municípios inteiros, tanto em Pernambuco como na Paraíba. Nelas eram cultivadas extensas florestas de eucaliptos que forneciam o combustível necessário para movimentar as turbinas geradoras de energia elétrica para as fábricas e para toda a cidade. Estradas de ferro serpenteavam por dentro daquelas matas. Lembro-me, com saudades, do apito dolente da locomotiva, quando, no meio da noite, se aproximava da cidade.
O Coronel tinha também uma fábrica de pólvora que supria as necessidades do Exército Brasileiro e uma escuderia, onde criava cavalos de corrida. Quem não se lembra da égua Tirolesa, muitas vezes campeã, que se tornou mais célebre que a Greta Garbo? Os cavalos eram alimentados com aveia e puro mel, extraído dos apiários que circundavam as matas de eucaliptos.
Toda a cidade – e sua população – dependiam do Coronel. E o Coronel era magnânimo e justo. Cada operário tinha casa, dotada de todos os serviços, com área proporcional ao tamanho da família. As casas dos gerentes eram maiores e dispunham de um jardim e um quintal com muitas fruteiras.
Meu pai era gerente das oficinas mecânicas, o que incluía a caldeiraria e as turbinas de energia elétrica. Nossa casa era mobiliada e, como parte disso, recebíamos, duas vezes por ano, um jogo de roupas de cama e mesa. Eram lençóis e toalhas estampadas com motivos florais, de cores alegres e brilhantes, que traziam o perfume do algodão puro, o barulho das máquinas, a voz das tecelãs e o apito da chaminé. Uma vez por semana recebíamos em casa lenha e carvão para a cozinha e, diariamente, uma caçamba de gelo para abastecer a “geladeira”, o refrigerador da época.
A poucos metros da nossa casa ficava a “Casa Grande”, residência do Coronel. Era um palacete de três andares em tijolo aparente, linda arquitetura, no centro de um parque, cheio de árvores e bichos.
Não longe da minha casa morava uma das esposas do Coronel. Tinha duas filhas: a Linda e a Mais Velha. Tinha também uma filha de criação, a Moreninha. Minhas irmãs fizeram amizade com elas brincando juntas desde pequenas, amizade essa que atravessou a adolescência. Aos dezessete anos eu acabei me envolvendo nessa amizade e comecei a freqüentar a casa atraído, devo confessar, mais pelo olhar sedutor da Moreninha do que pelo bolo Souza Leão que lá se preparava.
Os saraus se tornaram freqüentes e eu comecei a perceber que Linda se aproximava de maneira cativante. Conversávamos muito, às vezes em companhia da mãe que me perguntava como andava nos estudos. Muito afetiva, ela sempre encontrava uma palavra de incentivo.
Um dia Linda me convidou para ir ao cinema. Aceitei. Na tarde seguinte um automóvel preto de dimensões extravagantes parou à minha porta.
Cine São Luiz, no Cais da Rua da Aurora, aos pés da Ponte Duarte Coelho. O cinema está lá até hoje e, se procurarem bem, vão encontrar resquícios do suave perfume que ela usava.
Surgiu um namoro. Não sei como, porque só me dei conta disso quando começou a correr a notícia e todos aplaudiam o feliz encontro. Nessa altura eu havia completado vinte anos e estava prestes a terminar o curso técnico de indústria têxtil que fazia no Rio. Portanto passava o ano inteiro fora de casa para onde voltava nas férias longas de fim de ano, já que nas férias de Junho me trancava nas oficinas da escola para montar e desmontar máquinas.
Com o tempo notei que alguma coisa não encaixava. Eu não sentia encantamento naquele namoro. Apesar da longa ausência não sentia saudades. Sentia um apreço muito grande pela menina, seu olhar meigo, seus gestos lentos, sua conversa inteligente, mas aquela centelha que gera labaredas e devora os sentidos, essa não aparecia.
Naquele ano eu andava concentrado nos estudos e não podia imaginar um namoro que terminasse em casamento, por maiores que fossem as perspectivas de uma vida confortável à sombra do Coronel. No Rio de Janeiro, fora os estudos, minha ocupação era aprimorar biografia com idas cada vez mais freqüentes ao Mangue. O Mangue! A cidade profana que não tinha dia nem noite. Ali aprendi muito. Na voragem do desejo eu via o sofrimento; na subjugação do sexo eu via a humilhação; numa palavra de carinho eu via o alento aflorar na expressão contraída de um rosto sem esperanças.
Novamente de férias e o namoro continuou molenga, insípido, sem promessas. Procurei dar a entender à Linda que eu me achava muito jovem para assumir qualquer compromisso sério. Esperei que a minha frieza pusesse fim a tudo sem causar maior sofrimento. Foi quando um dia, pela manhã bem cedo, o mesmo carrão preto parou novamente à porta, numa viagem que não tinha sido combinada.
-- O Coronel mandou dizer que gostaria de falar com o senhor. O senhor pode ir agora?
Vesti-me às pressas, alisei os cabelos com meu pente Guarany e embarquei. Alcancei o terceiro andar do palacete numa viagem que parecia interminável . Cheguei a uma sala vazia que me pareceu do tamanho de um campo de futebol. Bem no fundo uma mesa de reuniões. Sentado à cabeceira, o Coronel, de terno e gravata. Eram sete horas da manhã.
-- Muito prazer. Sente-se por favor.
O Coronel olhou-me fixamente. Encarei o seu olhar com serenidade.
-- Eu soube que o senhor está noivo da minha filha. Vamos marcar a data do casamento... 20 de Janeiro, está bem para o senhor?
Antes que eu pudesse responder qualquer coisa ele continuou:
-- O senhor está fazendo um curso de indústria têxtil no Rio, não é mesmo? Falta pouco para terminar, eu sei. Eu quero que o senhor visite a minha fábrica na Paraíba e me dê a sua opinião. O motorista vai pegá-lo amanhã às sete horas. Prazer em conhecê-lo, senhor Luigi.
Pensei esconder da minha mãe, que me esperava ansiosa, o que havia acontecido, mas não foi necessário porque eu só viria a recuperar a fala muitas horas depois.
Na fábrica fui recebido pelo diretor, que transbordava uma alegria mal explicada:
-- Bem-vido à família, meu caro Luigi! Vamos jantar na Casa Grande. Mandei preparar o seu quarto, espero que descanse bem. Se faltar alguma coisa é só tocar a campainha, o Mustafá fica de plantão a noite inteira. Amanhã eu lhe mostro a fábrica. Você pode perguntar o que quiser, para você não há segredos. Na quinta feira vamos fazer um passeio de iate. O Coronel mandou organizar um passeio de três dias, só para a família. Você vai conhecer os coqueirais, as plantações de caju, os eucaliptos, as oficinas das locomotivas, tudo. E também muita gente da família.
O passeio foi feito. Depois vieram as visitas às escuderias, à fábrica de pólvora, aos matadouros. E as corridas de cavalos, nas manhãs ensolaradas do Hipódromo, com champanhe, ternos de linho branco, saias curtas e chapéus coco. E os almoços. E os jantares.
Era tudo fascinante, mas comecei a sentir que o chão me faltava sob os pés. Eu não cabia naquele mundo, porque aquele mundo era grande demais para mim. Eu havia aprendido a trabalhar duro desde os doze anos de idade, pendurado no estribo de um bonde debaixo da garoa fria de São Paulo, escondido dentro de um capote muito maior do que eu e tendo como almoço café com pão ou, excepcionalmente, um sanduiche de mortadela, retirados da máquina do “Bar Automático“ , por alguns tostões, na Avenida São João, bem perto do Edifício dos Correios. Decididamente aquele não era o meu mundo. Eu ali seria uma fraude.
Marquei um último cinema com Linda. Na saída tomamos um sorvete no Gemba, e nos sentamos no Cais da Rua da Aurora, de onde podíamos contemplar o rio. Não fiz nenhum preâmbulo. Expliquei-lhe que não me considerava maduro para um casamento e não queria deixá-la esperando pelo meu amadurecimento, que poderia demorar muito. Seria injusto para ela e cruel para ambos. Por maior que fosse o seu sofrimento aquela era a única coisa honesta que eu poderia fazer. Algumas lágrimas, contidas com esforço, escaparam-lhe e rolaram pelo seu rostinho ingênuo. Minha alma sangrava. Entramos no carro e voltamos em silêncio. E em silêncio ficamos pelo resto da vida.
Logo depois escrevi ao Coronel. Numa longa carta expliquei porque estava “abandonando o iate”. Nosso relacionamento fora extremamente curto. Esperava não deixar mágoas. Não recebi resposta. Nem eu a merecia.
No dia seguinte embarquei num ônibus capenga que percorreu os quinze quilômetros de estrada de barro até a Praia da Conceição, uma praia deserta onde havia uma colônia de pescadores e mais nada. Eu já havia estado ali antes. Dormia num mocambo coberto com folhas de coqueiro e comia lagosta. Não porque tivesse o paladar refinado mas simplesmente porque não havia outra coisa para comer. Fiquei ali totalmente só, em recolhimento , até o fim das férias.
E voltei ao Mangue aos prantos mas com a consciência tranqüila de que não me havia aproveitado de ninguém.