Decidi interromper a série de crônicas que havia denominado de “CAPÍTULOS”. Tratavam da minha carreira profissional, onde eu me pavoneava em elogios ao meu trabalho. A próxima seria a Fábrica de Tecidos Seridó que projetei para a União de Empresas Brasileiras, a qual se associou à japonesa Shikibo e construíram a Fábrica, que eu administrei durante vários anos. Eram crônicas enfadonhas e de interesse pessoal.
Por isso resolvi escrever esta “CARTA AOS MEUS AMIGOS” e a quem mais interessar possa.
Vou retroceder no tempo :
De 1944 e 1948, morando em Pernambuco, eu fiz o curso Industrial Básico na Escola Técnica do Recife, uma escola da rede federal, situada no Derbi, um bairro residencial elegante. O prédio da escola ficava na margem do Rio Capibaribe, uma vista encantadora, com sua correnteza impetuosa ilustrada pelas cores desastradas do pôr de sol. A escola dispunha de um alojamento muito confortável. O regime era severo: pela manhã educação física, café com mungunzá que a gente apelidou de chá de burro.
No período da manhã, aulas teóricas, à
tarde aulas práticas nas oficinas: tornos mecânicos, fresas, plainas e
furadeiras. À noite, após o jantar, estudo dirigido, acompanhado por um
professor assistente.
Junto ao prédio da escola tínhamos três vizinhos importantes. Um era o Hospital-Maternidade. Do meu quarto, eu escutava os gritos das parturientes que choravam as dores do parto. Naquele tempo a anestesia não estava devidamente desenvolvida.
Outro prédio era a Casa do Estudante, um alojamento para estudantes de medicina. Ali fiz muitos amigos e aprendi como era feita a carcaça do corpo humano.
Finalmente, bem próximo ao prédio da escola, estava o Necrotério, onde se congelava os cadáveres enquanto aguardavam a necrópsia e o sepultamento merecido.
Ocorre que o Necrotério vendia aos
estudantes de medicina ossos inteiros, costelas, tíbias e crânios, para estudarem
em suas casas.
Curioso, eu também comprei o meu, que
guardei com muito zelo e respeito, por muitos anos até que lhe pude dar um
sepultamento adequado. Na verdade, fiz uma cremação. No quintal de minha casa, cortei
um pé de eucalipto da variedade Citriodora, a madeira mais aromática, e fiz uma
grande fogueira.
Depositei ali o ilustre anônimo,
invoquei meus Orixás e rezei meu “Requestat in pace, Amen”.
Por que conto isto agora? Porque, agora, e eu me refiro há poucas semanas atrás, deram de me aconselhar a furar o crânio. “Credo cruis ! Que coisa mais estapafúrdia”
Eu tive um AVC três anos atrás. Com a
ajuda dos médicos fui melhorando e fiquei praticamente recuperado. Mas o tempo,
que não espera por ninguém, foi cumprindo o seu papel e as pernas ficaram bambas.
Problema de vascularização nos membros inferiores, diagnosticaram os exames. Muito
bem, contratei uma massagista para fazer a drenagem linfática.
Mas alguém me alertou:
-- Você tem água na cabeça !
Como é que essa água se formou ali, me
perguntei. Desconfiei logo na qualidade do vinho que eu estava bebendo. Talvez
estivesse muito fluido e o cérebro o interpretou como imprestável.
-- Você tem que tirá-la! Tira-la como?
Comecei a procurar por onde. Quantos orifícios temos no corpo? As narinas. Nada.
Os ouvidos. Nada. Os olhos. Nada. Sobraram o Fio-fó e o Bilau. Estão muito longe, melhor esquecê-los.
Vou ter que furar o crânio.
Longe de me desesperar, resignei-me. E feliz com os meus sentimentos, aguardarei a hora de subir a Montanha de Narayama.
E, lá do alto, olharei para baixo e
direi orgulhosamente:
São “OS MEUS AMIGOS.”