Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu
pensamento?
Tão longe, de mim distante
Onde irá, onde irá teu pensamento
Quisera saber agora
Quisera saber agora
Se esqueceste, se esqueceste
Se esqueceste o juramento.
Quem sabe se és constante
Se ‘inda é meu teu
pensamento
Minh’ alma toda devora
Da saudade, da saudade, agro
tormento.
Esta é a canção “Quem sabe”, com música de Carlos Gomes e letra de Francisco Leite. Transcrevo apenas alguns versos. O que quero é destacar o último verso:
“Da saudade, da saudade, agro tormento”
O agro tormento que segue a voz dos ventos!
A
saudade que nos devora a alma. Que nos aflige, nos atormenta, nos persegue ao
longo do tempo e se agiganta à medida que envelhecemos.
Saudades do que? Do que fizemos?
Saudade dos nossos amigos, que foram abandonados na voracidade
desta Pandemonia sem acento nem endereço, que nos emparedou a
todos num confinamento iníquo e aviltante ? Saudades do tempo de
criança, do menino de sete anos que construiu sua própria caixa de
engraxate e foi em busca de clientes ? Saudades do adolescente que
fazia um curso de mecânica e nas férias escolares procurava emprego
nas oficinas do bairro ? E todo o resto ? O trabalho fora de casa,
longe da família, nos quatro cantos do mundo, Argentina, Chile,
México, Itália, Alemanha, Inglaterra, Áustria, Japão, Tailândia,
Indonésia, Japão, Filipinas, Singapura ?
Não, não posso concordar com isso. A saudade não me devora a
alma, não me aflige, não me atormenta. Antes, me orgulha e me
envaidece. E não me deixa triste. Ao contrário, me deixa alegre.
Porque triste é não ter alguém de quem sentir saudades.
E, já que fiz as pazes com os meus sentimentos, vou falar das coisas
que eu quero contar:
Quero contar os amores que vivi e os amores que perdi. Quero contar as dores que sofri e os males que causei.
Quero falar dos vales e cordilheiras por onde andei. Quero falar dos lagos e montanhas onde nasci.
Quero
falar das árvores que plantei, dos filhos que criei e dos livros que não escrevi.
Quero
contar as desventuras por que passei nos mares que singrei e nos ares que cruzei.
Quero
contar como é dura a vida na caatinga, a pele calcinada pelo sol, o olhar de
angústia na criança faminta, o riso amargo saindo das rugas do velho
desamparado.
Quero
contar o pôr de sol no Rio São Francisco, o brilho da lua cheia no Capibaribe e
o azul cristalino do mar além dos arrecifes.
Quero
falar dos vinhos que bebi e da sede que sofri.
Quero
contar como ressoa o apito da fábrica, como estala a batida intermitente dos
teares e como ecoa a voz alegre das tecelãs.
Quero
contar como vivem as almas penadas dos insetos assassinados nos campos da
lavoura.
Quero
contar fábulas. Para dizer cobras e lagartos, engolir sapos, desvendar o
segredo da aranha negra, cantar como a cigarra, ser astuto com a raposa, ágil e
faceiro como o serelepe, vaidoso como um pavão. E beber como um
gambá.
Tudo isso quero contar. E antes que os tempos acabem quero deixar pronto o meu epitáfio, moldado em barro massapé da Feira de Caruaru, que dirá:
“Aqui jaz o bobão que sofreu a angústia de não saber contar tudo o que queria. E bobão ele era. Porque morto já estava, e não sabia”.