26 dezembro 2021

HOMEM QUE FAZ PANO

 

INTRODUÇÃO

Devo o título desta crônica à Dra. Ivone Raphael. A Dra. Ivone era a Oftalmologista que, em tempos idos, cuidava dos meus olhos para que eu pudesse ver melhor e agora cuida do que eu vejo para ter certeza de que é o melhor. E assim fixamos um pacto. Sem lenço e sem documentos.

 O HOMEM QUE FAZ PANO

Ora se deu que, um dia, não me lembro quando, nem onde, eu contei que num daqueles jantares faraônicos que tínhamos com os sócios japoneses na Fabrica de Tecidos Seridó eu havia mostrado meu cartão de visitas à Gueixa que me acompanhava. Naquela época quem não tivesse um cartão de visitas no Japão, não existia. No meu cartão constava o meu nome, endereço e a função. No verso eu havia mandado imprimir os mesmos dados em japonês. Quando a Gueixa leu o cartão exclamou: Ah ... homem que faz pano, né ?Soube depois que Ivone, ao saber desse fato, cabeça baixa e meditativa, sussurrou :  “homem que faz pano. Eis aí um belo nome para uma crônica”.

E aqui está ela. Porque panos fiz muitos. E montei máquinas para fazê-los. E construí fábricas para abrigá-las. E efetuei estudos de viabilidade para implantação de parques industriais têxteis.

No ano de 1948 eu recebia o Prêmio Nilo Peçanha conferido pela Escola Técnica do Recife. Havia concluído o curso de Mecânica de Máquinas. Viajei para o Rio de Janeiro e disputei, com suor e lagrimas, uma vaga na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil, com alojamento na própria escola. Tudo grátis. Eu tinha onde morar ! Meu pai me mandava uns trocados suficientes para cortar o cabelo e pegar um cineminha na Rua D. Pedro onde eu assistia filmes do neorrealismo italiano. Com isso eu ia, aos poucos, substituindo o meu dialeto nativo pelo verdadeiro idioma Toscano. Um garoto feliz. Quero dizer, felizardo.

Em 1951 completei o curso. Era um técnico têxtil. Terminadas as férias eu  já conseguia um emprego. Fui nomeado professor adjunto para o Departamento de Fiação na própria escola onde me formara. A minha primeira carteira profissional consigna a data de admissão : 1 de Maio de 1952. Dia do Trabalho! E assim, comecei fazendo fios. O panos viriam em seguida.

Dois anos depois vieram as fabricas. Fábrica Itatiaia de Tecidos. Estrada do Morro do Ar, sem número, Itatiaia, Rio de Janeiro, Fim do Mundo. Mais dois anos e um salto consagrador: Fábrica Bangu, a melhor fabrica do país. Fio 120, o melhor organdi do mundo, desfiles de moda em Paris, residência em casa da fábrica, desfile de motocicleta no campo de futebol para a apresentação do time nos dias de jogo. E tudo para que ? Fazer pano O melhor pana do Brasil.

Depois, um salto no espaço. Teresina PI. Aqui é melhor ler a crônica Velho Santiago . . . e ir se familiarizando com o Nordeste, a caatinga, o meu amigo Severino Mandacaru. Para que? Fazer pano. Porque em seguida viria a Sudene e seu Programa de Reequipamento da Indústria Têxtil do Nordeste concebido por Celso Furtado. Elaboração de dezenas de projetos de modernização de fábricas. Visita a todas elas, discussão com os empresários e fabricantes de máquinas, familiarização com os problemas sociais do Nordeste, a miséria do Pirambu, em Fortaleza. E tome pano.

Mas a lista é longa. Quatro anos na Comissão Econômica Para a América Latina escrevendo estudos sobre tecnologia têxtil, cinco anos como consultor da Organização das Nações Unidas Para o Desenvolvimento Industrial. Missões na América Central, Tailândia, Indonésia, Filipinas, Cingapura. E, para coroar, a Fábrica de Tecidos Seridó, em Natal, Rio Grande do Norte, construída em associação com a Shikishima Spinnining Company, que me levou ao Japão inúmeras vezes e me permitiu produzir os melhores panos deste país.

Haja pano.      

 

 

15 dezembro 2021

O PRESIDENTE EVENTUAL

 Condenado ao confinamento determinado pela Pandemonia sem acento nem endereço, só me restou recorrer à memoria.  E trago de volta uma velha crônica que havia publicado e despublicado muitos anos atrás.

Estou transcrevendo o texto original, que havia abandonado por medo estar ofendendo nossos juízes togados. Muitas vezes, quando tentamos fazer humor acabamos por ser grosseiros e, pior, cometendo ofensas a quem não as merece. Principalmente quando tratamos de forma genérica um grupo ou uma instituição,  como é o caso presente.

Mas, depois de ler o que pensam vários dos meus “colegas cronistas” da imprensa escrita - desculpem a minha presunção - tomei coragem e mandei ver. Quem sabe assim eu consiga   receber, pelo menos, um mísero comentário neste humilde e abandonado blog. Ou, glória suprema, a visita do Japonês da Federal.

 Sou totalmente ignorante em matéria de política. Bem que tentei, no meu tempo de estudante, meter-me nas discussões, participar de comícios, opinar sobre isto e aquilo. Cheguei a ler Marx e Engels. Nada deu certo. Não demorei a entender que, com a cara e o nome que eu carregava, ninguém me levaria a sério. Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.

Isso não quer dizer que não me interessasse pelos destinos do meu país e do seu comandante maior: o Presidente. Houve uma época em que eu lia três jornais todos os dias.: O “Correio da Manhã”, “O Jornal” e o “Jornal do Brasil”.

 Ora, se deu que, em 1954, o Presidente se suicidou. Comoção geral. O povo foi às ruas, não para quebrar coisas como é comum em nossos dias, mas para prantear o seu Presidente. O lugar foi ocupado pelo seu herdeiro natural mas depois, seguiu-se uma longa discussão sobre se isso era legítimo ou não. Discussão da qual eu nada entendi.

Sucederam-se vários presidentes, sempre com muita discussão e muita briga. Entre os últimos, creio que ainda estávamos no século passado, teve um que se mandou sem dizer água vai. Alegou que havia forças ocultas que não o deixavam trabalhar. No lugar dele entrou seu herdeiro, que deu muito trabalho porque muita gente não gostava dele. Até houve um plebiscito para saber se o povo queria que ele ficasse como pau mandado, mas o povo disse que não.

Ele era muito querido pela população e fez um comício que ficou na História, o famoso comício da Central. Eu assisti a esse comício, não porque me interessasse por política, obviamente, mas porque eu desembarcara no aeroporto do Galeão, vindo de Montes Claros, e o motorista do taxi me comunicou que o trânsito estava bloqueado perto da Central do Brasil, por causa do comício. Já que eu não podia chegar ao hotel, pedi ao motorista que me deixasse perto do comício. E lá fiquei eu, em pé, bem próximo ao palanque, ouvindo os discursos. Foram muitos discursos. Quando tudo acabou eu, leigo que sou, disse pra mim mesmo: “Isso não vai acabar bem”.

 Porque, de repente, chegou um pessoal saído dos quarteis, metralhadora na mão, dizendo : “agora quem escolhe presidente é a gente”. E assim foi por muitos anos. Quando eles se cansaram de escolher presidentes, entregaram o trono a um civil dizendo:  “daqui pra frente é com vocês”.

Aí, não sei bem como, foi escolhido um novo presidente. Então, aconteceu um novo infortúnio:  Antes mesmo de tomar posse esse presidente adoeceu e foi levado para um hospital. Foi empossado lá mesmo e, no dia seguinte, veio a falecer.

Foi substituído pelo seu eventual, um nordestino tranquilo, de bigode imponente, o qual, findo o mandato, passou o cargo para outro nordestino, eleito pelo povo. Este não era nada tranquilo, ao contrário, era brabo e saiu brigando com todo o mundo. Além de brabo, era meio tan-tan  pois saiu catando o dinheiro de todo o mundo com a promessa de que iria devolver tudo depois, e com lucro. Não sei se ele devolveu mesmo porque, no meu banco, eu só tinha boletos de contas  que eram pagas com o suor do meu rosto.

Disseram também que entre as patifarias que praticou, este jovem presidente havia recebido um regalo considerado muito suspeito: Uma Fiat Elba,  zero quilômetro.  Um vexame!

Então resolveram tirá-lo, e eu nem sei bem como isso foi feito, porque, nessa altura, eu já andava tão cansado que parei de ler jornais e fui cuidar do meu reumatismo.

 E aí veio um período tranquilo em que os presidentes, todos eleitos pelo povo, passaram a trabalhar com grande empenho, embora nem todos agradassem a todo mundo, fosse quem fosse o presidente. Normal, porque isso é próprio do sistema democrático. Pelo menos foi isso que pensei porque eu, leigo total em política, andava cuidando apenas do meu laburo. Pois não é que, de novo, resolveram tirar o Presidente da vez? Acharam que este Presidente, mais exatamente, uma Presidenta, estava trabalhando mal e resolveram mandá-la embora. Isto, para muitos, foi considerado um golpe. O fato é que, no seu lugar, entrou o seu substituto eventual, tudo dentro da lei, segundo diziam os jornais, o que, obviamente, não correspondeu à opinião daqueles que  consideraram isso um golpe.  Pois agora, com golpe ou não, estão dizendo que este é igualzinho ou pior do que anterior e, por isto, vão mandá-lo embora também. Até aí eu entendo. Mas ficou-me uma dúvida.

Já expliquei que, em matéria de política, sou completamente leigo mas, que diabos, leigo também tem alma! Pois agora vou dar minha opinião de leigo e pouco me importa se me internarem num manicômio. Porque achei  esquisita  a  maneira como tudo isto está sendo feito.

Acontece que, fosse lá por que motivo fosse, atribuíram, esta tarefa a um dos Poderes da República: o Poder Judiciário. O Judiciário é formado por vários Tribunais, cada um identificado com uma sigla própria. Não sei se existe diferença hierárquica entre eles, tipo, um pai e muitos filhos, sendo o Tribunal filho um complemento do Tribunal pai, ao qual deve dar satisfação das maldades  que pratica, o que faria deste o Judiciário de verdade, a menos que o filho, quando menor, tenha sido emancipado pelo pai, não precisando, assim,  dar satisfações ao pai. Não importa, até aqui tudo bem, sabendo que o Tribunal filho que está no jogo é aquele que cuida das eleições.  

Tudo bem, mas nem tanto. Porque agora acabo de descobrir que os Juízes dos Tribunais, tanto o pai como o filho, são nomeados pelo Presidente da República, e a ele, é de se esperar, devem fidelidade. Podemos dizer que um juiz é um Juiz e que ele está acima dos interesses terrenos, portanto é imparcial. Ótimo. É assim que deve ser.

Mas aqui entra uma grande confusão. Alguns juízes pertencem simultaneamente a um Tribunal Filho e a um Tribunal Pai. Outros, só ao Pai. Tem mais: alguns juízes foram nomeados pelo presidente escorraçado, outros pelo presidente que chegou ao cargo por herança. Será difícil conseguir coerência nesse caleidoscópio de interesses. Prova disso são as suas reuniões longas e patéticas, enfeitadas por salamaleques e enriquecidas por elogios recíprocos, datas vênias, ipsis verbis, causa finita, ad perpetuam rei memoriam ... isto para não mencionar os floreios de linguagem jurídica, repetidos à exaustão para que se tornem válidos, nem os arroubos de histeria dignos de uma prima donna contrariada, para dominar o palco e comover os colegas e o público. Afinal os Juízes, ainda que cobertos pelo manto sagrado da toga, são seres humanos.

 Alguma coisa está errada. No centro dessa discussão está a definição de quem é o autêntico presidente: se aquele que foi eleito pelo povo ou aquele que ocupa o posto por herança. Ou nenhum dos dois. E quem vai resolver isso são os Juízes indicados pelos Presidentes envolvidos. Ora, esses juízes não foram escolhidos pelo povo como acontece com os presidentes. Decididamente, alguma coisa está errada. É preciso inverter essa coisa: o povo é que deve escolher os juízes. E os juízes indicarão o presidente.

 Com uma condição: os juízes removeriam aquele medonho manto fúnebre e seriam reincorporados à espécie humana.   

 ABSIT  INJURIA  VERBIS.

 Nota bene: Transcrevo o parágrafo introdutório do artigo publicado pelo mestre Nelson Mota no O Globo de 16 de Junho de 2017, na página dos editoriais:

“ Há juízes bons e maus, preparados e incompetentes, burros e inteligentes, honestos e desonestos, embora todos, ou quase, se considerem num patamar  acima do cidadão comum, pelo poder de decidir a vida e a morte de quem transgride  a lei.”

 ABSIT  INJURIA  VERBIS