Condenado ao confinamento determinado pela Pandemonia sem acento nem endereço, só me restou recorrer à memoria. E trago de volta uma velha crônica que havia publicado e despublicado muitos anos atrás.
Estou transcrevendo o texto original, que
havia abandonado por medo estar ofendendo nossos juízes togados. Muitas vezes,
quando tentamos fazer humor acabamos por ser grosseiros e, pior, cometendo
ofensas a quem não as merece. Principalmente quando tratamos de forma genérica
um grupo ou uma instituição, como é o
caso presente.
Mas, depois de ler o que pensam vários dos
meus “colegas cronistas” da imprensa escrita - desculpem a minha presunção -
tomei coragem e mandei ver. Quem sabe assim eu consiga receber,
pelo menos, um mísero comentário neste humilde e abandonado blog. Ou, glória suprema,
a visita do Japonês da Federal.
Sou totalmente ignorante em matéria de política. Bem que tentei, no meu
tempo de estudante, meter-me nas discussões, participar de comícios, opinar
sobre isto e aquilo. Cheguei a ler Marx e Engels. Nada deu certo. Não demorei a
entender que, com a cara e o nome que eu carregava, ninguém me levaria a sério.
Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.
Isso não quer dizer
que não me interessasse pelos destinos do meu país e do seu comandante maior: o
Presidente. Houve uma época em que eu lia três jornais todos os dias.: O “Correio
da Manhã”, “O Jornal” e o “Jornal do Brasil”.
Ora, se deu que, em
1954, o Presidente se suicidou. Comoção geral. O povo foi às ruas, não para
quebrar coisas como é comum em nossos dias, mas para prantear o seu Presidente.
O lugar foi ocupado pelo seu herdeiro natural mas depois, seguiu-se uma longa
discussão sobre se isso era legítimo ou não. Discussão da qual eu nada entendi.
Sucederam-se vários
presidentes, sempre com muita discussão e muita briga. Entre os últimos, creio
que ainda estávamos no século passado, teve um que se mandou sem dizer água
vai. Alegou que havia forças ocultas que não o deixavam trabalhar. No lugar
dele entrou seu herdeiro, que deu muito trabalho porque muita gente não gostava
dele. Até houve um plebiscito para saber se o povo queria que ele ficasse como
pau mandado, mas o povo disse que não.
Ele era muito
querido pela população e fez um comício que ficou na História, o famoso comício
da Central. Eu assisti a esse comício, não porque me interessasse por política,
obviamente, mas porque eu desembarcara no aeroporto do Galeão, vindo de Montes
Claros, e o motorista do taxi me comunicou que o trânsito estava bloqueado
perto da Central do Brasil, por causa do comício. Já que eu não podia chegar ao
hotel, pedi ao motorista que me deixasse perto do comício. E lá fiquei eu, em
pé, bem próximo ao palanque, ouvindo os discursos. Foram muitos discursos.
Quando tudo acabou eu, leigo que sou, disse pra mim mesmo: “Isso não vai acabar
bem”.
Porque, de repente, chegou um pessoal saído dos quarteis, metralhadora na mão, dizendo : “agora quem
escolhe presidente é a gente”. E assim foi por muitos anos. Quando eles se
cansaram de escolher presidentes, entregaram o trono a um civil dizendo:
“daqui pra frente é com vocês”.
Aí, não sei bem como,
foi escolhido um novo presidente. Então, aconteceu um novo infortúnio:
Antes mesmo de tomar posse esse presidente adoeceu e foi levado para um
hospital. Foi empossado lá mesmo e, no dia seguinte, veio a falecer.
Foi substituído
pelo seu eventual, um nordestino tranquilo, de bigode imponente, o qual, findo
o mandato, passou o cargo para outro nordestino, eleito pelo povo. Este não era
nada tranquilo, ao contrário, era brabo e saiu brigando com todo o mundo. Além
de brabo, era meio tan-tan pois saiu catando o dinheiro de todo o mundo
com a promessa de que iria devolver tudo depois, e com lucro. Não sei se ele
devolveu mesmo porque, no meu banco, eu só tinha boletos de contas que
eram pagas com o suor do meu rosto.
Disseram também que
entre as patifarias que praticou, este jovem presidente havia recebido um regalo
considerado muito suspeito: Uma Fiat Elba, zero quilômetro. Um
vexame!
Então resolveram
tirá-lo, e eu nem sei bem como isso foi feito, porque, nessa altura, eu já andava
tão cansado que parei de ler jornais e fui cuidar do meu reumatismo.
E aí veio um
período tranquilo em que os presidentes, todos eleitos pelo povo, passaram a
trabalhar com grande empenho, embora nem todos agradassem a todo mundo, fosse quem
fosse o presidente. Normal, porque isso é próprio do sistema democrático. Pelo
menos foi isso que pensei porque eu, leigo total em política, andava cuidando
apenas do meu laburo. Pois não é que, de novo, resolveram tirar o Presidente da
vez? Acharam que este Presidente, mais exatamente, uma Presidenta, estava
trabalhando mal e resolveram mandá-la embora. Isto, para muitos, foi
considerado um golpe. O fato é que, no seu lugar, entrou o seu substituto
eventual, tudo dentro da lei, segundo diziam os jornais, o que, obviamente, não
correspondeu à opinião daqueles que consideraram isso um golpe.
Pois agora, com golpe ou não, estão dizendo que este é igualzinho ou pior do que
anterior e, por isto, vão mandá-lo embora também. Até aí eu entendo. Mas ficou-me
uma dúvida.
Já expliquei
que, em matéria de política, sou completamente leigo mas, que diabos, leigo
também tem alma! Pois agora vou dar minha opinião de leigo e pouco me importa
se me internarem num manicômio. Porque achei esquisita a maneira
como tudo isto está sendo feito.
Acontece que, fosse
lá por que motivo fosse, atribuíram, esta tarefa a um dos Poderes da República:
o Poder Judiciário. O Judiciário é formado por vários Tribunais, cada um
identificado com uma sigla própria. Não sei se existe diferença hierárquica
entre eles, tipo, um pai e muitos filhos, sendo o Tribunal filho um complemento
do Tribunal pai, ao qual deve dar satisfação das maldades que pratica, o
que faria deste o Judiciário de verdade, a menos que o filho, quando menor, tenha
sido emancipado pelo pai, não precisando, assim, dar satisfações ao pai.
Não importa, até aqui tudo bem, sabendo que o Tribunal filho que está no jogo é
aquele que cuida das eleições.
Tudo bem, mas nem
tanto. Porque agora acabo de descobrir que os Juízes dos Tribunais, tanto o pai
como o filho, são nomeados pelo Presidente da República, e a ele, é de se
esperar, devem fidelidade. Podemos dizer que um juiz é um Juiz e que ele está
acima dos interesses terrenos, portanto é imparcial. Ótimo. É assim que deve
ser.
Mas aqui entra uma
grande confusão. Alguns juízes pertencem simultaneamente a um Tribunal Filho e
a um Tribunal Pai. Outros, só ao Pai. Tem mais: alguns juízes foram nomeados
pelo presidente escorraçado, outros pelo presidente que chegou ao cargo por herança.
Será difícil conseguir coerência nesse caleidoscópio de interesses. Prova disso
são as suas reuniões longas e patéticas, enfeitadas por salamaleques e enriquecidas
por elogios recíprocos, datas vênias, ipsis verbis, causa finita, ad perpetuam rei
memoriam ... isto para não mencionar os floreios de linguagem jurídica, repetidos
à exaustão para que se tornem válidos, nem os arroubos de histeria dignos de uma
prima donna contrariada, para dominar o palco e comover os colegas e o público.
Afinal os Juízes, ainda que cobertos pelo manto sagrado da toga, são seres
humanos.
Alguma coisa está
errada. No centro dessa discussão está a definição de
quem é o autêntico presidente: se aquele que foi eleito pelo povo ou aquele que
ocupa o posto por herança. Ou nenhum dos dois. E quem vai resolver isso são os
Juízes indicados pelos Presidentes envolvidos. Ora, esses juízes não foram
escolhidos pelo povo como acontece com os presidentes. Decididamente, alguma
coisa está errada. É preciso inverter essa coisa: o povo é que deve escolher os
juízes. E os juízes indicarão o presidente.
Com uma condição: os juízes removeriam aquele
medonho manto fúnebre e seriam reincorporados à espécie humana.
ABSIT INJURIA
VERBIS.
Nota bene: Transcrevo
o parágrafo introdutório do artigo publicado pelo mestre Nelson Mota no O Globo
de 16 de Junho de 2017, na página dos editoriais:
“ Há juízes bons e maus, preparados e
incompetentes, burros e inteligentes, honestos e desonestos, embora todos, ou
quase, se considerem num patamar acima
do cidadão comum, pelo poder de decidir a vida e a morte de quem transgride a lei.”
ABSIT INJURIA VERBIS