Fala Severino É começo de inverno na Serra. No Solar do
Cônego, onde convivo com minha quietude e meus gambás, a neblina cobre a
paisagem expondo apenas o cocoruto do Chapéu da Bruxa. Um clima de nostalgia me
invade a alma e me perturba o espírito. Vago com meus fantasmas. Com eles durmo
e com eles acordo. Sou um fantasma de mim mesmo.
Tiritando de frio, Severino Mandacaru emerge
das brumas com um olhar desconfiado, como se temesse uma acolhida pouco amistosa.
Longe disso, agasalhei-o o melhor que pude e preparei-lhe uma birita que uso
nas festas de São Joao, cuja receita não me atrevo a divulgar.
- “Seu Galego bixiguento, como é que você some
desse jeito? Saí da Catinga impiedosa, daquela terra sáfara
maninha, onde nem a macaxeira consegue vingar. Fui para o Brejo da Madre de
Deus, perto de Caruaru e de Fazenda Nova. Você deve conhecer pois representou
ali o espetáculo da Paixão de Cristo ”.
Tem razão Severino, lembro-me bem. Era o
final da década de 50. Fui lá muitas vezes. O espetáculo durava três dias e era
representado num cenário construído em pedra pelos artesãos locais, matutos pouco
instruídos, porém artistas brilhantes que fariam inveja a um Michelangelo. E o
mundo não sabia disso. José Pimentel fazia o Cristo e Ilva Ninho, a Mãe de
Jesus. Clênio Wanderley dirigia o espetáculo e fazia o papel do Judas. Eu fazia
o São Longuinho, o Soldado Romano Longinus, cego, que recupera a visão quando o
sangue de Cristo, já crucificado, jorra sobre os seus olhos. Eram todos meus
heroes.
- Desculpa, Galego mas eu não vim aqui para
conversar firulas e sim falar de coisas sérias, muito sérias.
- Fala, Severino, desabafa ! Você me conhece. Enfrentamos juntos muitas encrencas
durante a nossa convivência. Lembra-se de 64 ?
-
Eu não sei o que está acontecendo comigo. Eu não sou mais nada. Eu não
sinto mais nada. Eu não falo nada. Nada penso, nada cogito. Eu não sonho. Não
choro. Não rio. Não sei se estou dormindo ou acordado. Sou um zumbi, um morto-vivo.
- Calma Severino, eu explico: Isso é
causado pela Pandemonia, assim como ela é, sem acento nem endereço, que deveria
ter sido uma epidemia, depois glorificada como Pandemia e finalmente absorvida
e demonizada por este Pandemônio que a nossa sociedade produziu.
Da solidão em que vivemos no meio de tanta
gente, parentes, amigos, vizinhos, afetos e desafetos, admiradores, bajuladores,
sonâmbulos, almas penadas . . . e os
capetas.
Da escuridão tenebrosa que nos envolve. Num
céu sem lua e sem estrelas. Sem relâmpagos. Sem raios. Sem lâmpadas, sem faróis,
sem candieiros, sem lampiões. E nem, ao menos, um vagalume.
Do isolamento em que vivemos, sem médicos
nem enfermeiras, sem barbeiros, a velha faxineira que te arrumava a casa, e o
velho Biu, o quebra-galho que consertava tudo, desde o cabo de uma panela, uma lâmpada
que não acende ou a prateleira que desabou no armário.
Para aqueles chamados de “terceira idade” -
não sei quem inventou isso, nem me explicaram o que são as duas idades
precedentes - a coisa fica mais complicada. Em confinamento severo, sem contato
com o público, como exigem as recomendações médicas, você precisará de alguém para
qualquer coisa que precise. Um pedaço de pão na padaria, uma banana na quitanda
ou o papel quotidiano para limpar o fio-fó, alguém terá que buscar para você.
Essa tarefa, quando possível, é assumida por alguém da família a qual, por sua vez,
está empenhada na sua própria sobrevivência. Claro, você tem a internet, esse prodígio
tecnológico, com suas chaves, senhas, códigos algoritmos, que podem lhe trazer tudo o que você
quer e muito do que você não quer. Mas esse é um trabalho exaustivo e complicado
demais para um idoso digno desse nome.
Portanto, meu caro Severino, se você se
sente vazio, celebre esse vácuo com alguém, Faça grandes festas. Inspire-se nas
cores esparramadas pelo sol na tela do firmamento. Plante um pé de manacá. Vá
jogar xadrez. Cante um frevo do Capiba. Adote
um gambá.
E
lembre-se de uma coisa: o tempo é maior bem de que dispomos. Não o
desperdice. E saiba que o pior modo de desperdiça-lo é quando o passamos
sozinhos. Cative seus amigos.
Se nada disso der certo leia estes versos
do Augusto dos Anjos, dê uma pirueta e solte uma gargalhada.
“Tome, Dr. esta tesoura . . . e corte
Minha
singularíssima pessoa
Que
importa a mim que a bicharada roa
Todo
o meu coração, depois da morte ? !