07 agosto 2016

Harmonia no Vale, Harmonia nas Almas



Desde o início o grupo se mostrou coeso e harmônico. Bem acomodados  na compacta aeronave especialmente projetada para  manter o calor humano -  aquecei-vos uns aos outros - , despegamos do chão sob o manto da “FLAJUR – Turismo de Aventura : Aprendendo com o cliente”. A missão era perscrutar a bem sedimentada produção de vinhos na Serra Gaucha aprendendo como associar o vinho à culinária. Para alegria dos principiantes, o grupo incluía também  quatro experientes chefes, oriundos de outra Serra, a  Serra do Mar, no Estado do Rio, que contribuiriam para enriquecer o nosso aprendizado.
Porto Alegre nos recebeu com sua clássica temperatura de inverno, um friozinho sem exageros. Embarcados na Nave Mãe, que nos aguardava no aeroporto, partimos para Caxias do Sul ponto inicial das nossas visitas.
Depois de perambular através de ruas e ruelas dobrando esquinas sem cessar, ora à esquerda, ora à direita, para melhor aproveitar o silêncio da noite invernal que chegava, fizemos uma parada técnica num hotel tipo  “entre-cidades”  para tomar uns tragos.  Era um bar luxuoso, muito bem provido, e aí pudemos recarregar nossas baterias. Os que não bebiam puderam desfrutar do conforto das poltronas no amplo lobby, bem junto ao bar. Tão logo chegou a informação de “operação realizada com sucesso” iniciamos a retirada em marcha atlética, para gáudio da administração do hotel.
De volta à Nave Mãe ocupamos  nossos confortáveis assentos, guardando um respeitoso silêncio.
A noite prosseguiu com um “city by night” pela ruas e atalhos ondulantes de Caxias, iluminados por uma fulgurante lua cheia e, por fim, chegamos ao nosso destino: The Personal Royal Hotel.
Amplo, moderno e confortável. Atendentes solícitos e simpáticos, tudo muito acolhedor. Passamos no bar para dar início aos trabalhos com uma grappa  da Valduga. Nossos chefes e outros interessados em gastronomia saíram para conhecer restaurantes locais. Eu e minha mulher que sempre me acompanha nas horas difíceis, preferimos jantar no próprio hotel. Para encorajar  os petiscos  servidos  abrimos um alentado Extra Brut da Cave Geisse. Terminamos com um excelente  Villa Lobos da Valduga.

Manhã de esplendor  sob os céus de Bento Gonçalves. O sol explode no firmamento e espalha tintas como um pintor desastrado. O frio chega na medida certa. Nosso alvo?  Casa Valduga, no Vale dos Vinhedos, onde nos espera um mundo de conhecimentos e prazeres. Guiados pelo mago Tasso, enólogo da Casa e provável reencarnação de Torquato, o poeta latino, percorremos todo o processo de produção, descrito com grande competência e salpicos de poesia. Depois de uma longa degustação, onde desfilaram os melhores vinhos da Casa, foi exibido um filme que mostra a historia da família Valduga, chegada ao Rio Grande do Sul com os primeiros imigrantes Vênetos. No almoço somos brindados com a companhia de Juarez Valduga, um dos três irmãos que comandam a Vinícola. De uma simplicidade exemplar, o grande empresário nos explica porque e como expandiu suas instalações e ampliou sua produção sem perder as características e a qualidade típica dos vinhos de produção limitada. Com emoção, explicou as dificuldades que teve de encarar na tomada de decisão em cada etapa do projeto, especialmente na diversificação dos produtos. Depois de brandy, grappa sucos e geleias, Valduga  agora  se prepara para lançar uma linha de chás. Sem dúvida um belo exemplo de um grande empresário.

À tarde, corrida  para a Vinícola Dal Pizzol, um simpático ambiente que reúne história e pesquisa. Em meio a um museu de antigos apetrechos usados pelos primeiros colonos Vênetos na fabricação do vinho encontra-se uma cantina, embutida em um velho forno de cerâmica. Nela encontram-se os vinhos, alguns velhíssimos, com os quais o Sr. Antônio Dal Pizzol estuda o processo de amadurecimento. Ao lado começa um extenso vinhedo onde estão  plantadas, pelo menos um exemplar,  quase todas as castas do mundo.
 Fomos recebidos pelo Sr. Antonio com a simplicidade e cortesia típicas dos velhos vinhateiros da Serra Gaucha. No jantar que nos ofereceu, com pratos da típica cozinha Vêneta, proporcionou-nos um exercício interessante:
Primeiro provamos um vinho raro da sua coleção, um Cabernet  Sauvignon, safra 1995. Em seguida cinco Tannat: safras 2004-05-09-10-12. Cada participante atribuiu uma nota aos vinhos. Tirou-se a média das notas dos participantes, a qual foi comparada com a nota atribuída pelo Sr. Antonio, sommelier da Vinícola. Ao cabo de cada degustação ele tecia comentários específicos sobre cada safra. Fiquei orgulhoso pelo nosso grupo pois as médias encontradas ficaram muito próximas das notas do nosso grande mestre, Antonio Dal Pizzol.

Segunda feira tenebrosa na Serra Gaúcha. Ao acordar, relâmpagos, trovões e chuva em catadupa. O dia nem parecia ter chegado, tal era a escuridão nos céus. Precisávamos ir a Pinto Bandeira, no topo da montanha, por uma estrada pouco gentil. Mas a habilidade até então ignorada do nosso cinesíforo, estimulada pela veia irônica dos passageiros, levou-nos a bom termo.
Lá no fundo da Nave alguns gritavam: “Abre ozarrrrrrr!”.......”Abre  oz arrrrrr!”...... Outro profetizava: Hoje é sábado!....  Hoje é sábado! E o sábado feliz perpetuou-se até o fim da viagem.
Em resposta, nosso condutor fazia gestos com a mão e acenos com a cabeça mas nunca descobri se por consentimento ou desolação.
Não levou muito e chegamos ao topo da colina.

 Visita ao Santuário dos espumantes: a Cave Geisse, criação do enólogo Mario Geisse que veio do Chile para implementar a Casa Chandon e acabou  descobrindo  o terroir  onde criaria seus espumantes hoje premiados em vários países do mundo, inclusive na França. Voltou para o Chile como enólogo da Casa Silva deixando seus filhos na administração da Cave Geisse, na Serra Gaucha. Entre eles está o Daniel, que nos recebeu. Velho amigo da FLAJUR, Daniel esmerou-se no atendimento, colocando sua cozinha à disposição dos nossos chefes. Depois de um longo percurso entre tonéis e garrafas para aprender como é feito o espumante, passamos a uma detalhada degustação e, em sequência, ao almoço e... surpresa! Um cozido à moda da Serra tendo como epicentro os defumados produzidos  por Jurandyr, o Mago,  no seu mosteiro de Nova Friburgo.
Acompanha o cozido um psicodélico pirão que foi disputado a facadas....
......epa! eu quis dizer.... a colheradas, pela turma que, em bloco, o circundava. Nesse momento, não pude deixar de lembrar-me do meu amigo Severino Mandacaru, meu companheiro na roça de macaxeira em Cabaceiras, na Paraíba,  que dizia: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”.

O momento que se seguiu foi sublime. Jurandyr, o Bom dirigiu-se ao Daniel para felicitá-lo pelo eficiente trabalho desenvolvido à frente da Cave Geisse e agradecer-lhe a  calorosa acolhida que nos proporcionara. Então, estalando os dedos, materializou uma bicicleta de bambu informando que era um presente do grupo para o nosso querido anfitrião. Para quem não sabe, Jurandyr, entre uma fumaça e outra, produz bicicletas cujos quadros são feitos de bambu no lugar dos convencionais canos metálicos. Uma preciosa contribuição para tornar este mundo em decomposição um pouco mais saudável. Daniel, incrédulo e contente, a acariciava, narrando os passeios que costumava fazer em bicicleta percorrendo seus vinhedos.
Terça feira e o sol volta a brilhar. Visita a Lidio Carraro em Bento Gonçalves. Uma detalhada explicação sobre o conceito da vinícola: produzir vinhos amadurecidos em garrafas, sem uso de madeira. Degustação completa e farta, como sempre. Almoço na estrada, com cappelletti in brodo, polenta, radicchio, galeto e... sagu ao vinho. Ah! Esses venezianos... ainda bem que a sobremesa é à base de macaxeira. Findo o almoço, direto para a hospedaria.
A feliz combinação de montanha, sol de inverno, as plantações em curvas de nível, o estilo rústico dos chalés construídos em rocha de basalto, criou uma atmosfera de conto de fadas. O Borghetto Sant’Anna, no Vale dos Vinhedos, é mais do que uma simples pousada. É um Templo. É um centro para introspecção. Para repouso e meditação. Para intercâmbio de amor e sentimentos. Para distribuir sorrisos, doar gargalhadas, chorar de alegria.
Os chalés construídos em pedra bruta, com seus quartos que invadem a rocha ou a rocha que invade a sala, reportam-nos às cavernas dos trogloditas provocando instintos primitivos.  O despertar, nesse ambiente, é uma ressurreição. E, aí, lembramo-nos o que havia acontecido na vida anterior: havíamos sido surpreendidos com um jantar preparado pela imprevisível FLAJUR que, mais uma vez, tirava da cartola  ingredientes trazidos de outras Serras. Queijo de Nova Friburgo que se transformaria num delicioso fondue, complementado com um fondue de carne, mas não o gorduroso burghignonne e sim o chabu chabu da cozinha oriental. Ambos fartamente irrigados com brancos e tintos.
Fim da aventura. Dia seguinte, retorno aos pagos. Curtir as lembranças, a saudade, alimentar as novas amizades. Por isso conclamo a todos para que nos encontremos em uma taverna, não uma taverna qualquer, mas a taverna dos nossos corações. E faremos isso ao som de “In taberna quando sumus”, trecho da cantata “Carmina Burana”  de Carl Olff.  Um brinde a todos!


10 fevereiro 2016

Quando eu ficar bem velhinho


Roubei do brilhante sociólogo  ROBERTO  DAMATTA  o título “Quando eu for bem velhinho”, de sua crônica publicada  no jornal de hoje. Porque acabo de sair de uma experiência  que , por pouco,  não me tira a oportunidade de vir a ficar  “bem velhinho”.  Vi a morte de frente.
Dentro de um ônibus de turismo, no meio da madrugada, eu me encontrei  mergulhando num precipício esperando apenas achatar-me lá no fundo.
Depois de uma freada violenta, o ônibus começou a derrapar de um lado para o outro da estrada e, entrando numa curva, levantou as rodas do lado esquerdo e, aí, percebi que ia capotar. O resto eu já podia imaginar. Lembro-me, com horror, dos gritos desesperados dentro do veículo. Alguns passageiros, que não haviam colocado o cinto de segurança, foram jogados para fora de suas poltronas. A poucos graus do ângulo fatal o ônibus recuperou o seu equilíbrio. Descobrir a causa do acidente foi fácil. Fiz as contas: o motorista estava dirigindo há, exatamente, 15 horas contínuas.

Assim que clareou o dia,  comecei a providenciar o nosso retorno por avião. Eu estava com minha filha e duas netas. Continuar naquele ônibus seria um suicídio e um assassinato.
Não vou mencionar o nome da empresa criminosa. Não quero que se pense que pretendo tirar proveito da mesma, até porque nenhuma compensação pecuniária poderá apagar a sensação de estar diante da morte.

Por outro lado, esta experiência  levou-me a refletir sobre como eu gostaria de ser quando ficar “bem velhinho”.
 Primeiro quero ampliar meu círculo de amigos. São eles que nos mantêm jovens. Claro que, para isso, é preciso encontrar pessoas, velhas ou jovens, que tenham paciência com velhos, principalmente quando desatam a contar suas experiências  passadas, como eu estou fazendo agora. Sabem o que dizia Gabriel Garcia Marques? Ele escreveu: “Sabemos que estamos ficando velhos quando, em uma roda de bate-papo, para cada assunto tratado, nós temos um exemplo para servir de ilustração”.

Não quero usar bengala  e sair espantando mosquitos à minha frente. Se não puder usar as minhas próprias pernas para caminhar, ainda que tropegamente, ficarei em casa.  Nela  usarei um pedaço de bambu que cortei do meu bambuzal em  Friburgo e nele me apoiarei curtindo as gratas recordações que me trará.

Não quero usar cadeira de rodas para ir às ruas. Nunca vi nada mais triste do que um velhinho desfilando numa calçada numa cadeira empurrada por uma criatura que antigamente se chamava mucama, a face estática descolorida pelo tempo, o olhar fixo, vítreo, fitando o infinito, como uma imagem congelada na tela de uma televisão enguiçada. E a pobre mucama, de cara sofrida, cabeça inclinada para  a frente, medindo os passos para não sacudir o seu conduzido,  mais parece estar cumprindo uma pena imposta pela Santa Inquisição.

Não quero ser mantido vivo com a ajuda de aparelhos.  Não quero estar em uma UTI, o que quer que essas letras signifiquem, ligado  a uma bomba que insufla ar sintético nos meus pulmões. Não quero estar plugado a uma mangueira espetada no rabo ou onde quer que seja, uma cloaca que deveria envergonhar a ciência médica. Não quero que me deem comida através de sondas. Como vou poder sentir o sabor do vinho que me chega ao estômago através de vias clandestinas?  Vá lá que eu seja obrigado a comer papinhas e banana amassada desde que seja com minha própria boca.
Se eu não puder me alimentar com os meios que Deus me deu, deixai-me quieto. E eu me deixarei esvair como se esvai a espuma que coroa  as ondas na praia.

E quando tudo estiver terminado, quando não houver mais eu, coloquem esta minha roupagem sobre as chamas para que o fogo renovador me conduza ao espaço sideral onde possa iniciar vida nova e retribuir tudo o que fizeram por mim, dar-lhes tudo o que lhes neguei nesta vida por ignorância, preguiça, incapacidade ou simples avareza.

N.B. Se quiser rir um pouco leia “A Pena da Morte”. Clique no nº 52 da lista aqui ao lado.


Quero pedir desculpas aos meus parcos leitores. Terminei a crônica sugerindo que lessem o poeminha "A Pena da Morte" para rir um pouco. Mas esqueci que eu havia mudado a última estrofe. Vou reproduzir a versão original e, com ela, espero que riais. Se não rirdes, avisai-me, pois quem vai rir sou eu. Nem que seja da conjugação do verbo.


Aqui jaz o bobão que achava
Que em sonho morreria
E bobão ele era
Porque morto já estava e não sabia