23 abril 2013

SARAMAGO


Encontro Saramago num autocarro que vai da Charneca ao Bairro de Santa Cruz, onde tenho um ofício. Não me surpreendo com sua presença ali. Sei que é um homem ocupado mas sei também que é um curioso observador  empenhado em desvendar os segredos da alma humana. Sento-me ao seu lado e o cumprimento com um discreto aceno de cabeça e um tímido sorriso. Ele olha em frente. Parece fixar sua atenção numa jovem sentada duas filas adiante da nossa. A moça agita os cabelos como para arrumá-los. Saramago a observa. Ele não vê o seu rosto. Não sabe a cor dos seus olhos, não conhece o seu sorriso, nunca ouviu sua voz.  Apenas seus cabelos e seus ombros eretos. De onde vem? Para onde irá? Saramago percebe um lenço de seda que lhe envolve o pescoço. E fala da textura do pano, da delicadeza dos fios que o compõe e  faz conjecturas sobre as  pessoas envolvidas na sua produção, como chegou até ela, como o arrumou em volta do pescoço ... 
Meu destino chegou. Despeç0-me com um discreto aceno de cabeça e um tímido sorriso. Como te invejo, Saramago! Porque és capaz de ver tudo isso e tudo isso pôr no papel. E eu, que não consigo ir além da fimbria da minha sotaina, nada disso posso ver e nada disso pôr no papel. Como te invejo, Saramago!