Encontro
Saramago num autocarro que vai da Charneca ao Bairro de Santa Cruz, onde tenho
um ofício. Não me surpreendo com sua presença ali. Sei que é um homem ocupado
mas sei também que é um curioso observador
empenhado em desvendar os segredos da alma humana. Sento-me ao seu lado
e o cumprimento com um discreto aceno de cabeça e um tímido sorriso. Ele olha
em frente. Parece fixar sua atenção numa jovem sentada duas filas adiante da
nossa. A moça agita os cabelos como para arrumá-los. Saramago a observa. Ele
não vê o seu rosto. Não sabe a cor dos seus olhos, não conhece o seu sorriso,
nunca ouviu sua voz. Apenas seus cabelos
e seus ombros eretos. De onde vem? Para onde irá? Saramago percebe um lenço de
seda que lhe envolve o pescoço. E fala da textura do pano, da delicadeza dos
fios que o compõe e faz conjecturas
sobre as pessoas envolvidas na sua produção,
como chegou até ela, como o arrumou em volta do pescoço ...
Meu
destino chegou. Despeç0-me com um discreto aceno de cabeça e um tímido sorriso.
Como te invejo, Saramago! Porque és capaz de ver tudo isso e tudo isso pôr no
papel. E eu, que não consigo ir além da fimbria da minha sotaina, nada disso
posso ver e nada disso pôr no papel. Como te invejo, Saramago!