13 novembro 2012

O sabor oculto das coisas


1.    O sabor oculto do vinho
     2.    O sabor oculto da literatura

A cozinha molecular tem-nos revelado o que acontece dentro das panelas quando cozinhamos o nosso angu. O que se espera disso é  que, sabendo o que ocorre com os alimentos sob a ação do calor, possamos aprimorar o sabor, melhorar a textura, despertar os aromas e iluminar a imagem visual daquilo que comemos. Este resultado tem sido logrado, sem dúvida, se  julgarmos pelo sucesso dos chefs nucleares em cujos restaurantes  é preciso esperar meses para reservar uma mesa.
Os pesquisadores da cozinha molecular, em geral pós graduados em biologia ou química, tem dito aos cozinheiros que “não entendem  como estes conseguem produzir coisas gostosas sem conhecer as leis que regem a transformação dos alimentos”.
(Isto me faz lembrar uma frase que li há meio século, escrita numa placa exposta aos engenheiros de uma fábrica de aviões: “De acordo com as leis da aerodinâmica um besouro não pode voar. Mas o besouro voa porque não conhece as leis da aerodinâmica.)

Pelo menos isto é o que deduzo da leitura do magnífico livro de Hervè This, físico-químico do Laboratório de Química das Interações Moleculares do “College de France”, em Paris, sobre gastronomia molecular. O livro, Casseroles&reprouvettes,  já tem dez anos de publicado e nunca foi tão útil como agora.

Na edição italiana do livro, “Pentole & provette”, a tradutora  Alba Pezone explica que “sendo a cozinha uma espécie de química e física aplicadas, ensinar aos cozinheiros um pouco de física e química pode ajudá-los a compreender melhor o que fazem, a cozinhar melhor a cada dia e incentivá-los a inventar novos pratos”. Animado por esta explicação corri imediatamente para o penúltimo capitulo do livro: “O sabor oculto do vinho” onde, imaginei, poderia desvendar os mistérios da construção desse milagre que é a conjunção homem / natureza: o vinho.

Mas, antes de chegar lá, fiz outra descoberta, igualmente fascinante:  O sabor oculto da literatura. Desvendar os mistérios de um trecho literário, seja ele um ensaio austero ou apenas uma lorota bem contada pode ser, também, uma experiência sensorial gratificante.
O livro de This é perfeito pois nos proporciona ambas as coisas, alternando explanações teóricas complexas com ensinamentos de ordem prática para o dia a dia. De início ele adverte: “ A cozinha deve corrigir sua linguagem se quiser realmente progredir”.
E ao corrigirmos a linguagem chegaremos a verdadeiras peças literárias, como aquela que nos ensina a preparar um autêntico caldo de carne. Ao longo de duas extensas páginas ele explica o que  acontece na panela  quando preparamos o caldo. Analisa, à exaustão, o comportamento das partículas sólidas na corrente de convecção, as quais poluem o caldo, que deveria apresentar-se transparente. Mostra que é possível provocar a precipitação dessas partículas, o que proporcionaria a sua decantação. Na sua pesquisa, observando o movimento das partículas,  compara o tamanho, o peso e a velocidade com que se deslocam e conclui que, embora as partículas maiores permaneçam no fundo da panela as menores continuam navegando pelo líquido poluindo, assim, o caldo “como o cordeiro, poluidor inocente, poluía a água do riacho onde o lobo  bebia, na fábula do caro La Fontaine”.

Passei, avidamente, para as páginas seguintes. Elas explicam como se faz para cozinhar o ovo perfeito, aquele que chamamos vulgarmente de “ovo duro”.  Nele a gema deve estar centralizada, isto é, a clara deve circundar com uniformidade a gema.
Depois de ressaltar a importância da centralização da gema no ovo cozido o livro descreve as experiências feitas, todas embasadas nas leis da física. Nas palavras do autor: “Então, como obter uma gema bem centralizada? A solução é deduzida das experiências realizadas: é preciso evitar que, no interior da casca, a gema se desloque. Como? Eliminando a posição vertical do ovo que é a causa da flutuação da gema. Na prática, manipulando o ovo de tal forma que a gema permaneça no centro. Vamos cozinhar o ovo na água fervendo, fazendo-o rodar na panela. Depois de cerca dez minutos de cozimento podemos descascá-lo. A gema estará no centro.” 
A pesquisa mostra ainda que a consistência ideal do ovo cozido é obtida quando se completa a coagulação da gema e da clara. Que a temperatura de coagulação da gema é de 68 graus centígrados  enquanto que a da clara é de 62. Portanto, no cozimento não se deveria superar essas temperaturas, ainda que se possa usar uma temperatura uniforme de 64 graus.
 “Então, por que não usar os recursos técnicos que temos à disposição? A coagulação completa, a essa temperatura, levaria aproximadamente uma hora, o que poderia ser facilmente controlado por um relógio. Um termostato nos permitiria cozinhar o ovo a uma temperatura mais próxima da temperatura de coagulação. Certamente o cozimento levaria muito mais tempo mas não seria esse o preço que teríamos que pagar para ter um ovo duro perfeito?”, conclui  This.

E os nhoques? As receitas dizem que, durante o cozimento, os que voltam à superfície estão cozidos.  “Mas esta não é uma indicação segura” – explica o livro. “O cozimento do nhoque depende da sua temperatura interna e esta varia com o tamanho do mesmo. E, mais grave, a temperatura interna dos nhoques maiores é, muitas vezes,  inferior à  temperatura de coesão do amido da farinha de trigo. (quando as moléculas da agua se combinam com as moléculas do amido) Portanto seria necessário levar o cozimento além do ponto de flutuação”.
Para resolver isto a proposta de This é simples: “Caso se deseje uma precisão digna dos grandes cozinheiros deve-se elaborar uma tabela que indique o tempo de cozimento em função do tamanho dos nhoques.”

E o vinho? Deixei “O sabor oculto do vinho” para o final por ser esta a parte mais nobre de nossas  lucubrações. Nunca duvidei de sommeliers que conseguem reconhecer os aromas e sabores mais diversos nos vinhos que provam, identificando origem, castas e safras. Há pessoas que nascem com dons que transcendem à nossa compreensão. Assisti a uma partida de xadrez realizada na Plaza de Armas, em  Santiago do Chile. Era uma simultânea com 42 jogadores, distribuídos em volta da praça. O mestre observava o tabuleiro, fazia seu lance e prosseguia, praticamente à velocidade de quem caminha. Muitas vezes olhava o tabuleiro e passava ao seguinte sem mover suas peças pois percebia que o contendor ainda não havia feito o seu lance. A comparação é tosca, bem sei mas não pude deixar de relacionar ambas  as experiências. Em que pese a diferença dos sentidos estamos diante de atributos de igual grandeza.

Em “O sabor oculto do vinho” , Hervè This explica, em linguagem técnica e bem elaborada, como os compostos voláteis aromáticos contribuem para a percepção olfativa. Com esta linguagem, certamente acessível a um enólog, descreve as pesquisas que estão sendo feitas para desencantar os aromas escondidos no vinho:
“A última etapa da hidrólise dos glucosídeos devida aos glucopiranosídeos é aquela que limita a liberação dos torpenois da uva e do vinho porque as enzimas naturais agem muito pouco sobre os monoglucosídeos que têm, como parte não glucosídea ( chamada aglicone) alguns álcoois terciários ( linalol e terpineol). O betaglucosídeo das leveduras enológicas revela, no entanto, uma fraca atividade para o linalil beta-glucosídeo, um dos principais glucosídeos da uva. Além do mais, se  a uva for dotada de ...  ... ... ”
Certamente haverá imperfeições na tradução do trecho acima. Mas, francamente, você acha que vai fazer alguma diferença?

Por fim será interessante ressaltar a discussão que trata  da capacidade dos degustadores e a possibilidade de criar meios artificiais de detecção de aromas. Em “O teleolfato”, último capítulo do livro, This pergunta: “Quando alcançaremos esta nova forma de comunicação? Se fomos capazes de reproduzir imagens e sons, se conseguimos registrar as sensações tácteis, estamos em falta com o sabor e o olfato, para tristeza dos gourmets.”  Em seguida explica o avanço das pesquisas que estão em curso para a criação de um nariz artificial: Um aparelho analisador criado no laboratório INRA, de Theix, França, foi capaz de identificar, pelo cheiro, a origem de uma ostra proveniente da costa francesa.

A gastronomia é fascinante, não é? A literatura também. E se você chegou até aqui, incauto leitor, saiba que conta com a minha compaixão. Agora relaxe, encha o copo e ... Saúde!