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Não me atrevi a escrever sobre Nova Friburgo. Passados dez dias daquela manhã infausta em que acordei sem ao menos perceber que havia chovido, ainda perambulo pela cidade recusando-me a acreditar no que vejo. E, no entanto, a desgraça está ali e só a vejo aos pedaços à medida em que caminho, rua após rua, casa após casa, alma após alma. Eu nada sofri. Minha casa está inteira, minha família está inteira, a luz voltou, a água voltou e o jornal já esta sendo entregue. E quando vejo a destruição à minha volta eu me envergonho. O que foi que eu fiz para merecer tanta clemência?
QUATRO DIAS NA VIDA DE CARLOS HENRIQUE PASSOS MARTINS
Carlos Martins é um jovem de pouco mais de vinte anos, meu amigo aqui de Nova Friburgo. Ele escreveu o relato que segue, sobre a desgraça que assolou a cidade no dia 11 de Janeiro de 2011. Ele descreve uma pequena parte da tragédia, a parte que envolve a sua família, a sua casa e os seus vizinhos. A força da sua narração, com a dor que ela transmite, é suficiente para imaginar como está o resto da população. Carlos redigiu o seu texto no próprio celular, sob pressão dos acontecimentos, para enviá-lo ao Luciano Pires, do Café Brasil, pedindo-lhe que divulgasse um apelo de ajuda, no que foi logo atendido.
“Luciano, a correria aqui está sinistra. Vou escrever rapidamente aquilo que lembro, não vou me preocupar com o português e nem com nenhuma revisão para não tomar tempo... me desculpe pelo improviso fique a vontade para efetuar correções pertinentes... um abraço.”
Quarta – feira , 12 de janeiro de 2011.
Acordo assustado com um grande estrondo causado por um raio, vou até a janela do quarto e me deparo com um verdadeiro breu esporadicamente cortado pela claridade dos raios formados pela tempestade que caia. Do pouco que se enxergava dava para perceber que aquela chuva não era normal, volto então a dormir.
Às 6:00 da manhã minha esposa, grávida de 8 meses, levanta para ir ao banheiro e quando chega à janela me chama aos berros transtornada com aquilo que via. Logo depois, lembro-me bem do silêncio perturbador que era cortado por gritos de desesperos ouvidos aqui e acolá. A rua estava coberta por água.
Apesar de morarmos nas mediações do rio Bengalas, nunca as águas das enchentes haviam invadido a garagem do prédio, porém, desta vez, os carros ficaram inundados até a janela.
Ao olhar pela janela pude contar pelo menos 20 pontos de deslizamentos de terra, neste momento a maior preocupação era de se comunicar com familiares e conhecidos. Até às 7:30 da manhã ainda era possível usar o celular, todavia a única operadora que ainda funcionava só efetuava ligação para alguns telefones. Consegui contato com meu pai e com alguns clientes que relataram os problemas em seus bairros, a partir dai ficamos isolados sem energia elétrica, água e comunicação.
Depois que o volume da água do rio diminuiu foi possível andar pelas ruas tomadas pela lama. Peguei um par de botas “ 7 léguas” de um amigo vizinho e sai pelo bairro na tentativa de achar a família de minha esposa, que tem residência praticamente às margens do rio. Até chegar ao destino pude visualizar cenas de enorme destruição. A lojas à margem do rio foram devastadas, a locadora, padaria, posto de gasolina e concessionárias de veículos estavam completamente reviradas pelas águas e cobertas por lama. Ao chegar na rua onde mora a família de minha esposa me deparei um uma enorme árvore trazida pelas águas. É impossível descrever a cena. A árvore se encontrava sem a casca e seu tronco daria para construir o alicerce de uma ponte. Meus sogros estavam vivos, ainda desorientados só queriam saber como estava minha esposa, eles estavam imundos de lama e perderam tudo dentro de casa, quando digo tudo não é apenas uma maneira de dizer, a casa foi coberta pela água e nem as roupas do meu bebe que estavam lá escaparam.
Logo constatei que o bairro estava isolado e, como a maioria das lojas havia sido devastada, eu e meu vizinhos decidimos sair a procura de água e alimentos para fazer uma espécie de kit de sobrevivência. Juntamos o dinheiro em espécie que tínhamos, pegamos duas mochilas grandes de camping e saímos às compras. Nos únicos mercados que ainda estavam funcionando as filas eram enormes, velas e água eram artigos de luxo, compramos o possível e voltamos para casa.
O transito só foi liberado mais tarde e a partir daí sirenes e buzinas passaram a ser o som predominante durante muito tempo.
Angustiados com falta de comunicação arrumei uma maneira de ligar um radio em uma bateria de carro e foi nesse momento que conseguimos percebe o tamanho da gravidade que enfrentávamos.
Nesta noite com a sala iluminada por leds e velas recebemos um grupo de pessoas desabrigadas, eram umas vinte pessoas todas sem casa ou com lares interditados pela defesa civil. Na sala estava a irmã de minha amiga, que é minha vizinha, e seus amigos vizinhos. Improvisamos um jantar e fomos dormir.
Quinta feira dia 13
Ao amanhecer decidi ir a procura de minha mãe que mora em um bairro vizinho, no caminho para o seu bairro percebi que tudo o que tinha visto era ainda muito pequeno em relação a toda destruição da cidade. A parte baixa do bairro foi dizimada pela enxurrada, carros amontoados, casas completamente destruídas. Em uma dela 8 pessoas da mesma família perderam suas vidas. Minha mãe por morar em um condomínio um pouco mais alto deu sorte e com ela nada aconteceu. Quando a encontrei ele me contara chorando como havia sido terror a noite anterior. Disse-me o quanto é ruim ouvir pessoas pedindo ajuda e não poder fazer nada.
O clima de desespero esteve estampado em todas as faces durante todo o dia. Qualquer chuva um pouco mais forte era motivo de alarde. O cenário era de muita tristeza e incerteza. Ao voltar para casa encontrei um sujeito chorando que caminhava sem destino pelas ruas, fui ao seu encontro e ele me disse: - “Ela estava viva, eu tirei ela com vida, eu a beijei antes de morrer”. Ele se referia a sua mãe. Não tive palavras para aquele homem. Naquele momento apenas agradeci por ter encontrado a minha mãe com vida.
Sexta feira dia 14
Eu ainda não havia encontrado minha irmã que estava em um bairro mais afastado, consegui uma moto e fui ao encontro dela ainda sem saber se estava bem. A caminho de sua casa me deparei com o transito mais caótico que presenciei até hoje. Voluntários tentavam organizar a bagunça, que era generalizada. Havia uma trilha, entre o tumulto, reservada para as ambulâncias e carros de emergência. O restante era uma confusão só. No ar, a quantidade de helicópteros assustava.
A rua onde mora minha irmã estava interditada pela queda de uma barreira. Consegui passar com dificuldade ao chegar a sua casa chamei pelo seu nome e ninguém atendeu. Olhei pela garagem e visualizei seu carro completamente cheio de lama e ao lado sacolas plásticas com lixo das coisas inundadas pela enchente que invadiu a garagem. Fiquei aliviado pois com certeza ela não estava ali mas se teve como embalar o lixo é porque estava bem.
Fui ao centro da cidade procurá-la e fiquei boquiaberto com a destruição da cidade. Ali descobri que um amigo meu perdera a vida tentando ajudar outras pessoas.
Encontrei minha irmã que estava em segurança e voltei para casa.
Cansado, por volta de 15:00 horas decidi tirar um sono com minha esposa. O descanso não durou muito. Fomos acordados por minha amiga vizinha aos berros gritando, - vamos sair, vamos sair! Acordei assustado peguei a mochila coloquei o que deu dentro, e na escada em meio ao caos perguntei o que estava havendo. Disseram que uma barragem teria estourado e que iria inundar toda a parte baixa da cidade. Naquele momento na escada mesmo tentei tranquilizar minha esposa que quase entrou em trabalho de parto pelo susto. Eu sabia que não existia barragem nem represa na cidade capaz de causar esse estrago. Voltamos para o apartamento e ficamos vendo as pessoas na rua desesperadas ainda por algum tempo.
O povo estava assustado vários boatos corriam na cidade, tudo para deixar o clima ainda mais tenso.
A noite ainda sem luz e comunicação improvisamos um banho ao melhor estilo caneca e balde. Jantamos e dormimos.
Sábado 15 -01
A energia elétrica foi restabelecida e com ela comunicação e água começam a funcionar. A vida nem de longe volta ao normal. A única coisa que importa agora é ajudar a quem precisa e tentar reerguer a cidade.Os hospitais estão lotados, e para as pessoas desabrigadas falta de tudo.”
Carlos Henrique Passos Martins
Datatreya Tecnologia e Gestão Ltda
Nova Friburgo - RJ