“ Ambrósio, me traz as chinelas”!
È a voz da Velha. Ouço o rangido das molas da cama e os passos do Ambrósio. Imagino-o caminhando iluminado pela pálida luz da lua que filtra pela clarabóia. Dirige-se ao banheiro e recolhe as chinelas com respeito. Vai até o quarto da Velha e deposita, silenciosamente, as chinelas aos pés de sua protetora. Olho para o relógio. São duas da madrugada. Bocejo, espanto um mosquito e tento dormir novamente.
Disseram-me, há muitos anos, que se todos os homens do mundo fossem convidados a colocar a sua cruz em uma grande praça para que, depois, cada um escolhesse a que mais lhe agradasse, cada um, depois de experimentar todas as cruzes, acabaria escolhendo a sua própria.
Não sei se isto aconteceria realmente. Mas de uma coisa estou certo. Com a do Ambrósio ninguém ficaria. E quando penso que essa pobre criatura mal venceu doze anos da sua amarga existência fico imaginando o que mais lhe poderá reservar o futuro se nada acontecer que o liberte do jugo da Velha. Magro, esfarrapado e descalço, consegue-se ver a palidez da pele onde não a encobre a sujeira. Seus olhos parecem duas lamparinas alimentadas a óleo de babaçu. Não faíscam, como nas descrições clássicas. Apenas bruxuleiam, com o brilho triste da chama que se extingue.
Ambrósio é fogoió, fruto da intemperança de algum descendente de holandeses perdido no meio da caatinga com uma cafuza. Nunca troquei com ele uma palavra. Nunca lhe ouvi a voz. Ambrósio não fala. Ambrósio só obedece.
“Ande, moleque, se avexe”!
A minha casa, meia parede com a da Velha, fez-me espectador involuntário do drama que é a vida do Ambrósio. Do meu quarto posso ouvir desde as pragas trovejantes da Velha até os soluços mais abafados do menino. Entendi, com o passar do tempo, que ele fora adotado aos cinco anos de idade e, desde então, presta seus serviços à Velha, única moradora da casa.
A Velha acorda cedo e, enquanto aquece os pulmões para o esbravejar do dia, escarra como um tuberculoso dos velhos tempos. Era a hora em que eu saia para a Fábrica e sentia engulhos, mal conseguindo engolir a tapioca do magro café da manhã que os meus vinte e cinco anos me permitiam.
“Ambrósio, limpa esse chão, Ambrósio, lava essa pia, Ambrósio, você ainda não deu banho no cachorro? Anda, menino, já é quase meio dia e eu hoje quero comer vatapá. Ah!, eu hoje vou comer vatapá! Meu Deus, que macaxeira horrorosa e a trinta cruzeiros o quilo! Onde você comprou essa macaxeira, Ambrósio? Você não presta atenção nas coisas, moleque! Ai, que trabalho me dá esse menino! Eu não posso fazer nada, tenho que andar o dia inteiro atrás dele, só me dá trabalho. Trabalho e despesa! Anda, vai lavar a escada que de repente chega alguma visita, vai ali e compra um maço de coentro na barraca do Biu, corre, recolhe essa roupa que está no varal, olha que sujeira que está esse fogão, Ambrósio!
Ambrósio não responde. Desloca-se de um lado para outro como fogo fátuo. Movimenta-se com espantosa agilidade, impulsionado pelos cascudos que recebe ou pela habilidade com que os evita.
Chocado pela crueldade com que era tratada a pobre criança, recusei-me a travar conhecimento com a Velha. Frequentemente a encontrava a espiar-me, da pequena varanda da sua casa, quando eu voltava da Fábrica, no verão em que o sol se punha tarde e enchia de cores berrantes o baixo firmamento dos Afogados, quando o Recife ainda era cheio de poesia. Eu fingia estar distraído e respondia com um educado Boa Tarde.
Quanto ao Ambrósio, eu o via regularmente nos fins de semana, no cumprimento de alguma missão, sempre correndo, em silêncio, ignorante da existência de um mundo à sua volta, ao qual ele talvez nunca teria acesso.
Numa tarde de sábado, não encontrando cigarros em casa, tive de sair para comprá-los e, mal cheguei ao portão, fui cercado pela Velha que, num milagre de intuição feminina, adivinhou-me as intenções:
“O senhor vai comprar alguma coisa? Ora, não se preocupe, eu mando o Ambrósio. Ele vai. Ele vai rapidinho, o senhor não precisa se cansar, não, não. Ambrósio, ó Abrósio, corre aqui moleque. Anda, vai ali na venda comprar... o que é que o senhor quer mesmo, heim? ... diga a ele, diga, ele volta logo, ele... Ah, é cigarro, não é? É cigarro, Ambrósio. Ele sabe até a sua marca. Ele achou um maço que o senhor perdeu perto do portão. Ele fumou escondido, o danado, mas eu peguei e dei uma surra nele. O senhor precisa tomar mais cuidado, viu? O senhor... devia...
Eu não ouvia mais nada. Imaginava o pobre Ambrósio escondido atrás de uma mangueira saboreando o fruto do meu desleixo sem imaginar o castigo que aquilo lhe custaria. Mas quando o vi na minha frente com um sorriso de anjo maior do que o seu rosto mal alimentado percebi que ele estava feliz naquele momento. Feliz por prestar-me um serviço, a mim, que nunca lhe pedira nada.
Tomou-me o dinheiro das mãos e com seus passinhos miúdos partiu em direção à venda, vagarosamente, como se quisesse perpetuar aquele momento.
Havia um buraco nas suas calças. Fiquei contemplando aquela imagem que foi se diluindo, diluindo, até se dissipar completamente, envolvida por duas lágrimas. Lembrando-me da história das cruzes eu apenas murmurava:
“Ambrósio, Ambrósio! deixa-me ser o teu Simão!”