23 novembro 2008

A Centenária

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Vinha de braço com ela, cabrocha rija, pernas bem feitas, olhos amendoados e boca rasgada, pele sedosa e bem morena, os cabelos negros e lisos ondulando sobre os ombros nus, o busto empinado, atrevido e provocante, pronto para levantar vôo. O vestido apertado revelava uma harmonia de curvas que representava a síntese da perfeição do universo. Era uma deusa carnal. Orgulhava-se dela. Ele era alto e moreno, ombros largos, porte atlético, o cabelo sempre ensopado de brilhantina.

Considerava-se um sedutor. Precisava conquistá-la. Cercava-a de atenções, procurando impressioná-la por todos os meios. Desde que engajara no corpo de polícia local sentia-se importante e, com a cabrocha, não economizava. Gastava, sem cuidado, as parcas moedas que o soldo que uma pequena cidade do interior do Nordeste pode oferecer. Sim, precisava conquistá-la definitivamente.

Caía a tarde. O sol incendiava o horizonte soltando golfadas de fumaça branca que encobriam, aqui e ali, rajadas de labaredas vermelhas. Caminharam em direção à praça.
-"Foi aqui que Zé Grande correu", disse ele, mostrando certo orgulho e observando a reação da moça. Eu devo ter acertado o braço dele. "Mas antes de fugir, o cangaceiro deixou cinco cabras estirados no chão. Eu escapei por milagre”. Ela contraiu os ombros aconchegando-se e contemplou-o, com carinho, orgulhosa. Ele viera com o reforço policial e ali ficara para guarnecer a cidade pois havia o perigo de Zé Grande voltar para vingar-se da corrida que havia levado. A empreitada, afinal, fora boa para o jovem apaixonado que ganhara, além do magro soldo, como prêmio, uma "centenária", moeda de prata suficiente para um mês de farra. Vivia exibindo-a, todo prosa. Levava-a no bolso juntamente com as outras moedas para dar a impressão de que aquilo era normal, coisa à toa, apenas a recompensa por um trabalho bem feito.

Atravessaram a praça e caminharam em direção ao mercado. Gente se amontoava junto às bancas de roupas e objetos usados, pechinchando. Passaram por baixo de algumas árvores onde alguns matutos comiam bagos de jaca mole, usando espetinhos de bambu, retirando-os do fruto enorme estendido no chão com as víceras à mostra. Mais adiante, do meio de uma aglomeração, partia a voz imponente de um cantador calcinado pelo sol da caatinga:

Eu canto, eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto glosa e repente
E galope à beira mar...

 Aproximaram-se, ela rindo das improvisações do cantador, ele apenas sorridente, mantendo a dignidade que a farda lhe impunha. A voz do cantador continuou, seca, pungente:

Já viajei por muitas terra
Já chupei muito cajá
Namorei loura e mulata
Branca, preta e sarará
Mulhé nenhuma eu enjeito
Basta sabê mi agradá...

Ela olhou com malícia para o namorado que sorria, discretamente, das bravatas. Aproximaram-se da roda, abrindo caminho entre os matutos que riam e falavam incentivando o artista. Era um tipo cafuso, atarracado, de olhos acesos, faiscantes. Vendo o casal que se aproximava fez uma pausa mantendo o ritmo no instrumento, respirou fundo e despejou:

Moço distinto se chegue
Meu canto é pra si scutá
 Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná...

Sentiu que todos os olhares se voltavam para ele. Não podia fazer feio diante da namorada. Além disso dez tostões não iriam pesar muito no orçamento. Para mostrar desembaraço meteu a mão no bolso e, pelo tato, escolheu a moeda que lhe parecia menor. E, sem olhar, com um gesto despretensioso como quem cumpre uma tarefa rotineira, atirou-a na caneca do cantador, na verdade uma tigela de lata proporcionada pela embalagem de um queijo do reino. A moeda tiniu ao encontro da lata. Um som cristalino, irreal. Uma luz brilhante como a de um raio ofuscou-lhe a vista. Para ele seguiu-se o estrondo de um trovão. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Todos olharam para a calota do ex-queijo do reino arregalando os olhos, incrédulos. Alguns exclamaram: Virge! Um gaiato bateu palmas. O cantador esbugalhou os olhos de espanto. Nem respirou fundo nem nada. Trovejou:

Si o que eu tô vendo é verdade
Si num mi falha os olhá
Tanto dinheiro na cuia
Nunca mais hei de juntá
Moço distinto obrigado
Deus lhe há de arrecompensá...

Ela o apertou de encontro a si, olhando para todos, orgulhosa. Ele empalideceu, engoliu em seco. Afastaram-se do grupo vagarosamente, em silêncio.
A centenária se fora. Ficara a conquista definitiva da namorada.


                                                                                                               Severino Mandacaru