.
Na Vila Maria, toda a molecada “chocava” bonde. A extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) prestava-se perfeitamente para a prática daquele maravilhoso esporte que, visto com os olhos de hoje, era muito mais arriscado do que qualquer corrida de Fórmula 1. Colocado num ponto estratégico do estribo do bonde, o praticante, (não quero chamá-lo de “chocador”), esperava que o bonde alcançasse uma velocidade compatível com as suas habilidade e coragem e, inclinando o corpo para trás para compensar a força da inércia que, caso contrário, o faria mergulhar de “ponta cabeça”, saltava. Ao alcançar o solo o corpo do atleta já deveria estar na vertical. A partir daí era só continuar correndo e amortecer a velocidade até parar. Ele tinha, ademais, que assegurar-se de que, na hora do salto, o caminho à sua frente estivesse livre. Não foram poucos os casos em que inocentes crianças, bondosas senhoras e trôpegos velhinhos foram abalroados, felizmente sem maiores conseqüências do que a ressonância dos impropérios dirigidos aos respectivos genitores. Éramos heróis. O mais novo (eu) tinha oito anos. O mais velho não devia estar muito longe dos quatorze. Competíamos todos. Classificavam-se os vencedores por grupos. O último a saltar, obviamente, era o vencedor. Na etapa seguinte os vencedores de cada grupo formavam um novo grupo e competiam entre si. E daí saia o Campeão da rodada. Ganhei algumas etapas mas nunca cheguei a Campeão. Tinha o Nestinho, que, com quatorze anos já era soprador na fábrica de vidros, calçava 44, e ganhava todas; tinha o Toninho, de pernas arqueadas e que pulava descalço, ágil como um serelepe, e muitos outros, todos difíceis de vencer. Um dia saltei mal. O bonde havia atingido uma velocidade que estava acima das minhas possibilidades de equilíbrio. Vi apenas o solo aproximando-se do meu rosto, senti o impacto tremendo no chão de terra e depois a derrapagem, de bruços, por um bom par de metros. Permaneci por um tempo com o rosto colado ao chão, as pernas e os braços ardendo em fogo. Percebi que, no alto, havia se formado uma roda de gente. Abri os olhos. Quatro botões dourados me ofuscaram a vista e, vagarosamente, me levantaram. Eram os botões das mangas do uniforme do Seu Albano. Seu Albano era português e morava ao lado da minha casa, um vizinho que nos orgulhava. Era guarda civil e eu admirava os botões dourados do seu uniforme azul marinho, sempre bem passado. Além de autoridade, Seu Albano encantava-me porque devia ter acesso a muitos livros, já que vivia sempre lendo. Seu Albano apalpou-me as pernas e, certificando-se de que eu podia permanecer de pé, avaliou os estragos. Tirou um lenço, enxugou, como pode, o sangue que me escorria dos joelhos e cotovelos, tomou-me pela mão e, lentamente, iniciou o caminho de casa. A subida da ladeira íngreme até o topo da Vila Maria foi penosa. Os joelhos ralados me ardiam como brasas. Eu não me sentia dono dos braços. Parecia que tinham passado à propriedade do Seu Albano. Eu escondia as lágrimas. Seu Albano não falava. Quando chegamos, era noite. Meu pai já havia voltado do trabalho. -- “Seu Guilherme, olha aqui este teu filho que anda a chocar os bondes. Estatelou-se no chão e, por pouco não racha a cabeça oca que tem. Tive vontade de dar-lhe uns cachações eu mesmo, mas só tu podes fazê-lo. Toma que é teu.” Meu pai levou-me para um pequeno aposento de terra batida que havia por trás da cozinha. Contemplou-me demoradamente. Depois levou ambas as mãos às costas, onde afivelava o cinturão. Eu, de cabeça baixa, fitava o chão, envergonhado. Seu Guilherme levantou meu queixo com o dedo indicador e, fitando-me firmemente, falou com voz entristecida: -- “Gino... você não pode chocar bondes... é... perigoso... e... muito feio. Mas... pelo menos... vê se aprende a chocar direito, seu salame!
Na Vila Maria, toda a molecada “chocava” bonde. A extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) prestava-se perfeitamente para a prática daquele maravilhoso esporte que, visto com os olhos de hoje, era muito mais arriscado do que qualquer corrida de Fórmula 1. Colocado num ponto estratégico do estribo do bonde, o praticante, (não quero chamá-lo de “chocador”), esperava que o bonde alcançasse uma velocidade compatível com as suas habilidade e coragem e, inclinando o corpo para trás para compensar a força da inércia que, caso contrário, o faria mergulhar de “ponta cabeça”, saltava. Ao alcançar o solo o corpo do atleta já deveria estar na vertical. A partir daí era só continuar correndo e amortecer a velocidade até parar. Ele tinha, ademais, que assegurar-se de que, na hora do salto, o caminho à sua frente estivesse livre. Não foram poucos os casos em que inocentes crianças, bondosas senhoras e trôpegos velhinhos foram abalroados, felizmente sem maiores conseqüências do que a ressonância dos impropérios dirigidos aos respectivos genitores. Éramos heróis. O mais novo (eu) tinha oito anos. O mais velho não devia estar muito longe dos quatorze. Competíamos todos. Classificavam-se os vencedores por grupos. O último a saltar, obviamente, era o vencedor. Na etapa seguinte os vencedores de cada grupo formavam um novo grupo e competiam entre si. E daí saia o Campeão da rodada. Ganhei algumas etapas mas nunca cheguei a Campeão. Tinha o Nestinho, que, com quatorze anos já era soprador na fábrica de vidros, calçava 44, e ganhava todas; tinha o Toninho, de pernas arqueadas e que pulava descalço, ágil como um serelepe, e muitos outros, todos difíceis de vencer. Um dia saltei mal. O bonde havia atingido uma velocidade que estava acima das minhas possibilidades de equilíbrio. Vi apenas o solo aproximando-se do meu rosto, senti o impacto tremendo no chão de terra e depois a derrapagem, de bruços, por um bom par de metros. Permaneci por um tempo com o rosto colado ao chão, as pernas e os braços ardendo em fogo. Percebi que, no alto, havia se formado uma roda de gente. Abri os olhos. Quatro botões dourados me ofuscaram a vista e, vagarosamente, me levantaram. Eram os botões das mangas do uniforme do Seu Albano. Seu Albano era português e morava ao lado da minha casa, um vizinho que nos orgulhava. Era guarda civil e eu admirava os botões dourados do seu uniforme azul marinho, sempre bem passado. Além de autoridade, Seu Albano encantava-me porque devia ter acesso a muitos livros, já que vivia sempre lendo. Seu Albano apalpou-me as pernas e, certificando-se de que eu podia permanecer de pé, avaliou os estragos. Tirou um lenço, enxugou, como pode, o sangue que me escorria dos joelhos e cotovelos, tomou-me pela mão e, lentamente, iniciou o caminho de casa. A subida da ladeira íngreme até o topo da Vila Maria foi penosa. Os joelhos ralados me ardiam como brasas. Eu não me sentia dono dos braços. Parecia que tinham passado à propriedade do Seu Albano. Eu escondia as lágrimas. Seu Albano não falava. Quando chegamos, era noite. Meu pai já havia voltado do trabalho. -- “Seu Guilherme, olha aqui este teu filho que anda a chocar os bondes. Estatelou-se no chão e, por pouco não racha a cabeça oca que tem. Tive vontade de dar-lhe uns cachações eu mesmo, mas só tu podes fazê-lo. Toma que é teu.” Meu pai levou-me para um pequeno aposento de terra batida que havia por trás da cozinha. Contemplou-me demoradamente. Depois levou ambas as mãos às costas, onde afivelava o cinturão. Eu, de cabeça baixa, fitava o chão, envergonhado. Seu Guilherme levantou meu queixo com o dedo indicador e, fitando-me firmemente, falou com voz entristecida: -- “Gino... você não pode chocar bondes... é... perigoso... e... muito feio. Mas... pelo menos... vê se aprende a chocar direito, seu salame!