17 agosto 2022

Tão longe, de mim distante

Tão longe, de mim distante

Onde irá, onde irá teu pensamento?

Tão longe, de mim distante

Onde irá, onde irá teu pensamento

Quisera saber agora

Quisera saber agora

Se esqueceste, se esqueceste

Se esqueceste o juramento.

Quem sabe se és constante

Se ‘inda é meu teu pensamento

Minh’ alma toda devora

Da saudade, da saudade, agro tormento.

Esta é a canção “Quem sabe”, com música  de Carlos Gomes e letra de Francisco Leite. Transcrevo apenas alguns versos. O que quero é destacar o último verso:

Da saudade, da saudade,  agro tormento”

O agro tormento que segue a voz dos ventos!

A saudade que nos devora a alma. Que nos aflige, nos atormenta, nos persegue ao longo do tempo e se agiganta à medida que envelhecemos.

Saudades do que? Do que fizemos? 

Saudade dos nossos amigos, que foram abandonados na voracidade

desta Pandemonia sem acento nem endereço, que nos emparedou a

 todos num confinamento iníquo e aviltante ? Saudades do tempo de

criança, do menino de sete anos que construiu sua própria caixa de

engraxate e foi em busca de clientes ? Saudades do adolescente que

fazia um curso de mecânica e nas férias escolares procurava emprego

nas oficinas do bairro ? E todo o resto ? O trabalho fora de casa,

longe da família, nos quatro cantos do mundo, Argentina, Chile,

México, Itália, Alemanha, Inglaterra, Áustria, Japão, Tailândia,

Indonésia, Japão, Filipinas, Singapura ?

Não, não posso concordar com isso. A saudade não me devora a

alma, não me aflige, não me atormenta. Antes, me orgulha e me

envaidece. E não me deixa triste. Ao contrário, me deixa alegre.

Porque triste é não ter alguém de quem sentir saudades.

E, já que fiz as pazes com os meus sentimentos, vou falar das coisas

 que eu quero contar:

Quero contar os amores que vivi e os amores que perdi. Quero contar as dores que sofri e os males que causei.

Quero falar dos vales e cordilheiras por onde andei. Quero falar dos lagos e montanhas onde nasci.

Quero falar das árvores que plantei, dos filhos que criei e dos livros que não escrevi.

Quero contar as desventuras por que passei nos mares que singrei e nos ares que cruzei.

Quero contar como é dura a vida na caatinga, a pele calcinada pelo sol, o olhar de angústia na criança faminta, o riso amargo saindo das rugas do velho desamparado.

Quero contar o pôr de sol no Rio São Francisco, o brilho da lua cheia no Capibaribe e o azul cristalino do mar além dos arrecifes.

Quero falar dos vinhos que bebi e da sede que sofri.

Quero contar como ressoa o apito da fábrica, como estala a batida intermitente dos teares e como ecoa a voz alegre das tecelãs.

Quero contar como vivem as almas penadas dos insetos assassinados nos campos da lavoura.

Quero contar fábulas. Para dizer cobras e lagartos, engolir sapos, desvendar o segredo da aranha negra, cantar como a cigarra, ser astuto com a raposa, ágil e faceiro como o serelepe, vaidoso como um pavão. E beber como um gambá.

 Tudo isso quero contar. E antes que os tempos acabem quero deixar pronto o meu epitáfio, moldado em barro massapé da Feira de Caruaru, que dirá:

 “Aqui jaz o bobão que sofreu a angústia de não saber contar tudo o que queria. E bobão ele era. Porque morto já estava, e não sabia”.