17 maio 2019

Irremediavelmente Feliz



O sino de bronze que uso para saber se alguém quer falar comigo repicou com badaladas mais insistentes do que o normal no final da tarde de ontem. Uma neblina tímida cobria o Vale do Cônego inaugurando a chegada do Outono. Encaminhei-me, trôpego, até o portão, tentando adivinhar quem seria, tão apressado, àquela hora.

Severino Mandacaru, esquálido como um arbusto na caatinga, não esperou que eu lhe desse passagem. Empurrou-se portão adentro e começou a farejar as ferramentas que, salvo melhor juízo, constituem a minha oficina.

-    “Severino ! Você aqui ?”

-    “Que diabos veio fazer aqui sem avisar ninguém, seu  galego safado ? ”

-     “Vim dar uma olhada no bambuzal, Severino. Achei que era tempo de rever a Montanha de Narayama.” 

Nesta época do ano uma neblina rasteira cobre o vale do Cônego, aqui em Nova Friburgo, deixando expostos os picos que o cercam, entre eles, o Chapéu da Bruxa. É impossível mostrar indiferença a um cenário tão expressivo. Quando cai a tarde, sentado num tronco qualquer, eu começo a perceber os anciãos se reunindo em volta do Pico. São os Deuses que formam  o Sagrado Conselho de Narayama. São eles que vão decidir quem está apto a subir a Montanha e expedir a devida orientação aos participantes.

E comecei a refletir: Esses são os Deuses de Narayama, que existiam quatro séculos atrás, numa região indigente, com uma população dizimada pela fome, onde uma boca a mais para comer podia decidir a sobrevivência da família. Esses não são os meus Deuses. A subida espontânea a Narayama, por mais justificada que fosse, configuraria um suicídio.

Expliquei isso ao Severino, poupando os detalhes, mostrando-lhe a gravidade do gesto perante as leis naturais do Cosmos, pelo menos para quem, como eu, acredita em vida no Espaço Sideral. Severino ouviu em silêncio.

-  “ E aí ? ”

-  “ Aí veio a isquemia.”

-  “ E que diabos quer isso dizer, Galego? ”

- “A isquemia foi um aviso mandado pelos meus Deuses.  Foi como se dissessem: Fique quieto aí. Nada de enxadas, pás e picaretas. Esqueça Narayama. Esqueça os bambus e seus saleiros. Esqueça os troncos pesados e os bancos feitos com pranchas grossas. Não levante mais muralhas de pedras roladas, sente-se e ouça o lamento jacu e o canto os sabiás, contemple as montanhas e o horizonte, o brilho da lua cheia e as pinceladas desastradas do sol poente na tela do firmamento.”

Severino me contemplava em silencio. Olhou mais uma vez, demoradamente, para as minhas ferramentas e voltou-se para o Chapéu da Bruxa. Baixou os olhos. Parecia triste. Apertou-me fortemente num abraço demorado e sumiu no oco do mundo. Deixou uma lágrima na minha lapela.

  E a minha vida mudou. Meu corpo ficou pesado. A cabeça parecia postiça. Os braços pareciam pêndulos. Exames médicos, radiografias, tomografias e tempo. Muito tempo. Aos poucos fui recompondo a carcaça, agora maltratada pelos anos que não gastei no seu devido tempo. Preciso mudar tudo. Tratarei de eliminar as causas do meu estresse. Primeiro vou limpar o quintal social; depois cuidarei do resto. Controlar os sentimentos, avaliar  emoções, resolver medos e ansiedades, recuperar a fé, mergulhar na espiritualidade. São coisas que virão a seu tempo.

                      Começo com o cancelamento da assinatura do meu jornal quotidiano. Parecia simples mas me exigiu dias e dias de negociação com uma educada porém melosa atendente, num telefonema no qual falávamos idiomas diferentes. Quando, depois de inúmeras desculpas infrutíferas lhe expliquei que ela me cobrava uma taxa para ler as notícias que eram justamente a causa do meu estresse, a empresa começou a reduzir a mensalidade – por tempo limitado, é claro. Desesperado, apelei para um último argumento: disse-lhe que não enxergava mais nada, que não podia ver as letras estampadas no jornal. A moça demorou para responder. Parecia estar pensando. Mas logo veio com uma pérola: “Eu só não consigo entender porque o senhor não está enxergando mais nada.”  É triste ver o que essas pobres moças são obrigadas a fazer para ganhar a vida.
                       Não irei mais a essa coisa chamada “Reunião de Condomínio”, esse encontro de vizinhos que deveria ocorrer para administrarem seus interesses e disciplinarem seu comportamento e, no entanto, se transformou num campo de ofensas e agressões. Passei uma Procuração para um meu vizinho civilizado, torcendo para que ele resista e não siga o meu caminho.

                         Reduzi a televisão a dois ou três canais culturais. Não só pelas notícias deletérias que me trazem mas, também, pela massa incontrolável de publicidade veiculada por este mundo mercantilista em que vivemos. É ridículo ver um anúncio pronunciado em velocidade acelerada mecanicamente, até porque fica óbvio que o objetivo foi reduzir o custo do anúncio. Tinha razão Karl Marx quando desse: “A Televisão é o ópio do Povo” Como, não foi ele quem disse isso? Então eu estou plagiando a mim mesmo!

                           Vou desistir da Fórmula 1 porque tem sido estressante ver que a Ferrari não consegue ganhar uma corrida há tanto tempo. Ela foi campeã por sete anos consecutivos mas isso foi há muito. Naquele tempo, como legítima Escuderia italiana, ela contava com os melhores diretores:  como diretor de projetos,  Adryan Ney – um inglês ; como diretor de provas, Ross Brawn, outro inglês; como diretor geral, Jean Todd, um francês. E, para finalizar, o piloto, Michael Schumaker, um alemão. Tutti brava gente.

                           Para quem atingiu a minha idade, não faltam motivos para o estresse. O mundo digital é avassalador. Usar os serviços de um banco, por exemplo, era muito simples. Eu fazia isso pela internet, ou pelo telefone, usando meus dados pessoais e uma senha. Agora não. Eu preciso de um aplicativo, a senha do aplicativo, o complemento do aplicativo e sua respectiva senha que deve ser diferente da primeira. E ainda devo provar que não sou um robot e adivinhar aquelas letras idiotas e desfiguradas que não consigo decifrar em menos de três tentativas.

Na calada da noite, reflito. Vem-me à memória o trabalho, a família, os amigos, os montes, vales e lagos por onde ande andei. A vida nas fábricas, o sofrimento dos operários. Os projetos que construí. A ausência da família nas longas viagens ao Exterior. A infância minguada e as noites de “blecaute” durante a guerra.         E três ou quatro crônicas que me orgulho de ter escrito.  Então, fazer o que?  Não me resta outra alternativa :

Ficar irremediavelmente feliz.