13 junho 2020

Meus Irmãos em Penitência



 Queridos irmãos.
Muito tempo atrás escrevi “O Colaminho”. Era a história de um casal que, por causa de um colaminho, meteu-se numa discussão inicialmente civilizada mas que, aos poucos, foi-se tornando cruenta, redundou em briga feroz e terminou em separação. E ambos foram infelizes para sempre. E tudo por causa de um colaminho !

Eu não vim aqui hoje recontar essa história, mas para   estabelecer um paralelo com os dias que estamos vivendo.
Em estado de contrição, engolfados nessa penitência austera que nos foi imposta pelas iniquidades que cometemos, nos arrastamos entre as quatro paredes que o destino, a nossa laboriosidade o nosso sacrifício ou a nossa ganância, nos reservou.
Apelei para o diálogo que levou à separação do casal para dar um exemplo de como as pessoas, sob o efeito dessa “Pandemonia” sem acento, perdem a noção espaço/tempo e embaralham seus sentimentos tornando-se impacientes, rancorosos, intolerantes, transformando-se em alguém a ser evitado. Um ser estressado e deprimido, esse é o protótipo para o qual tende o cidadão confinado de nossos dias.

ORATE FRATES. Orai irmãos é o que vos peço.  

E quem o pede é alguém que nunca orou. Deve ter sido erro de fabricação. Mas essa foi uma prática que eu nunca consegui incorporar e, para justificar-me, eu dizia que a minha oração era o trabalho. Com isso, fui engabelando os devotos amigos que me toleraram e, apiedados, certamente rezaram por mim.
Mas devo dizer que ímpio não sou. Porque um dia, muito tempo depois, para minha surpresa, encontro em um texto qualquer que lia por acaso, as seguintes palavras:  . . .  “a melhor forma de oração é o trabalho”.

Precisamos nos acostumar. O isolamento está aí e não sabemos quando irá terminar nem como irá terminar. Temos que
nos adaptar ao novo sistema de vida, limitado em sua amplitude e aliviado com os novos meios de comunicação – e aqui me refiro principalmente àqueles que ainda usam lápis e papel para se fazerem entender. Precisamos inventar o que fazer para dissipar esse tempo exasperador que se recusa a passar. É preciso criar,  fazer o bestunto funcionar para que possa inventar coisas.

E aqui uma delas já me vem à cabeça: o Silêncio.
Aprenda a ficar em silêncio!
Você não terá obrigação de responder perguntas e, mais importante, você não irá mais falar besteiras. Se for preciso pendure no pescoço uma plaquinha dizendo “Em Voto de Silêncio”. Mas, cuidado! Dependendo do seu temperamento o silêncio pode ser traiçoeiro, e você acaba ficando mais deprimido ainda. Então fale suas besteiras à vontade, e aguente as consequências.

Cabe-me agora uma digressão. Devo contar uma experiencia que vivi quando ainda era bem jovem, no meu amado Recife, e que tem a ver com o silêncio. Uma vez por ano eu costumava fazer um retiro espiritual. O período era o Carnaval ou a Semana Santa e o local mais importante era um convento de frades.
Outro local, usado no período de férias escolares, era uma barraca com teto de palha de coqueiro na Praia do Ó, a 13 quilômetros  da cidade de Paulista, um reduto onde morava apenas um grupo de pescadores de lagosta.
No caso que vou relatar eu estava no Convento de Frades. Creio que eram Maristas e ficava na Praia da Piedade, logo depois de Boa Viagem. O Convento estava plantado em plena praia, de frente para o mar. O retiro durava seis dias e obedecia à uma regra geral: Silêncio absoluto! Ninguém podia falar. Durante o evento eram proferidas palestras e prédicas religiosas, bem como orações, sempre por parte dos frades. Instruções ligeiras aos fiéis emanavam dos religiosos, de forma rápida e sintética. Não eram admitidas perguntas. Nas horas de folga era facultado o banho de mar, vigiado por um frade, para garantir o silêncio dos fiéis.
O resultado dessa experiência foi assombroso. Seis dias sem falar.
Ao recuperar a voz, eu tive a sensação de estar ressuscitando. Parecia-me descobrir um mundo novo. Ao despedir-me dos frades minha voz parecia estar descendo das nuvens.

Mas voltemos ao nosso trabalho: descobrir o que fazer e como fazer, para cumprir nossa Penitência.
Para completar fui à procura de métodos e sugestões e, não me avexo de confessar, andei fuçando nos livros de auto ajuda. Não vou conseguir citar as fontes, em primeiro lugar pela sua extensão e depois, porque não tenho certeza se elas vão auto ajudar mesmo. Mas fiquem tranquilos: estarão devidamente entre aspas.

“Cuide da postura corporal.
  Durma sem travesseiro.
  Experimente não usar o encosto da cadeira.
  Não reclame das contrariedades que ouve.
  Não assista TV.
  Fuja dos Tizapps e Facebuques.
  Pare de falar mal dos outros.
  Pare de falar bem de você.
  Coma muita saladinha. E coma sem tempero.”

Para concluir, devo dizer que estou cansado. Trabalhei muito na vida. Construí fábricas, dei aulas, dirigi empresas, escrevi teses e fiz teatro nas horas vagas. E agora, quando planejo o meu futuro, tudo o que tenho a oferecer é . . .  um passado.      





04 junho 2020

Domiciana - A Iluminada




Parece exagero, mas não é. O título é justo.
 Domiciana estava “acima do entendimento humano”.
Domiciana, negra, pobre, analfabeta, sozinha no mundo, tinha todas as características para ser vítima de todos os preconceitos do mundo. Mas Domiciana levitava sobre eles, singrando através  das núvens do Olimpo. Domiciana era pura.

Foi descoberta por Dorotéa, minha esposa, na fila de um Banco. Tinha ido fazer seu recadastramento no INSS, procedimento com o qual a burocracia, aliada à “inclusão digital”, maltrata o cidadão comum, ou seja, aquele ingênuo trabalhador que ainda usa lápis, papel e a voz humana, para se comunicar. Domiciana tinha que preencher um formulário, mas não sabia escrever. Dorotéa prontificou-se a ajudá-la. Enquanto trabalhavam, deu-se o seguinte diálogo:

- Onde é que você mora ?
- Eu moro na Rua do Catete. Divido o quarto com três amigas.
- E o que é que você faz ?
- Eu sou faxineira, trabalho na diária. Já tenho quase todos os dias ocupados, só tenho um dia livre.
- Não, você não tem mais um dia livre. Prepare-se porque você vai trabalhar lá em casa.

E assim foi. Depois de algum tempo cumprindo o seu dia semanal, Domiciana foi devidamente entronizada no Castelo do Cosme Velho. Ocupou seu quarto com banheiro privativo nos 107 metros quadrados que compõem o nosso apartamento, podendo usufruir da deslumbrante vista do Cristo Redentor e contemplar a horta de 2,2 metros quadrados que tenho pendurada em forma de jardineira, nas minhas janelas. Aí planto rúcola e ervas aromáticas para tempero.

Domiciana cuidava da casa, fazia limpeza, lavava a roupa e preparava os deliciosos pratos italianos que Dorotéa lhe ensinava, num verdadeiro sincretismo culinário afro-italiano.

Os anos passavam.  Do ano de 1997, quando a admitimos, já havíamos chegado a 2004. Nossa admiração por ela aumentava a cada dia. Duas qualidades, aparentemente conflitantes, em Domiciana, nos impressionavam: sua ingenuidade e sua sagacidade. O que vou contar explica bem isso.

Certa ocasião um primo meu, italiano, veio visitar-nos. Chamava-se Biggio, uma forma carinhosa de tratar os Luigi, comum na Itália. Muito brincalhão, ele tentava aprender com Domiciana algumas palavras em português. Mas ela não tinha paciência e preferia comunicar-se por meio de mímica. Para isso havia criado uma coreografia própria. Gesticulava tanto que parecia estar dançando um  Maracatu de Luanda.

Um dia tivemos que sair cedo, Dorotéa e eu. O Bíggio ainda dormia. Instruímos Domiciana para que lhe servisse o café da manhã quando se levantasse.
Assim que voltamos percebi que Domiciana, olhando-me de soslaio, atraia Dorotéa para um canto da sala. Afastei-me para não criar embaraço. Ela falava a meia voz:

- “Dona Dorotéa, esse primo do seu Luis é doido. Completamente maluco. Olha só, ele me perguntou se eu não tinha um burro! Eu não respondi, e ele ficou repetindo: Burro! Burro! Burro!  e me mostrava um pedaço de pão. Burro nem come pão. Como é que eu ia ter um burro aqui? E se tivesse, como é que ele ia subir no elevador?”
Burro, em italiano, é manteiga.  Ah, esses falsos cognatos !

Biggio encantou-se com a Domiciana e sucumbiu aos seus quitutes. Num almoço de sábado, em plena feijoada, ele resolveu elogiá-la:

-  “Tu sei brava, Domicciana” !
 E disse isso com o mesmo fervor com que teria aplaudido o Pavarotti no Scala de Milão.

-  “O que? O que que ele disse? Brava? Sou brava sim.”
-  “Come? Come?” repetia o Bíggio, sem entender.
-  “Sou brava mesmo. Eu sou fogo, Eu sou foguinho.
-  “Come? Come?”, continuava ele, atordoado.
Domiciana foi até a cozinha e voltou com uma caixa de fósforos. Tirou um palito e acendeu-o. O Biggio, fingindo-se     assustado, exclamou:
- “Vuoi brucciarmi ?”  (você quer me queimar?)  
Domiciana continuou:
- “Charme? Sim. Tenho muito, muito charme, olha,  olha”  E empinando a bunda, mãos na cintura, começou a imitar as poses da Carmen Miranda e a rebolar.
Foi muito divertido.

Tendo começado a trabalhar conosco em 1997, ao chegar Janeiro de 2004, Domiciana completava sete anos de bons serviços. Em Janeiro de 2005 quis o destino que fôssemos, Dorotéa e eu, morar em Nova Friburgo, com seu aprazível clima de montanha. Levaríamos  Domiciana, obviamente mas, para nossa surpresa, ela não aceitou. Explicou que não suportava o frio, que o lugar seria muito diferente, e coisa assim.
Dorotéa, preocupada, começou a procurar um lugar para alojá-la adequadamente aqui no Rio. Foi quando a Domiciana informou que tinha uma amiga que dispunha de um quarto para alugar. Dorotéa foi em busca da tal amiga. Dona Maria, de Mesquita, era uma ótima pessoa.  

 A partir de então, Dona Maria revelou-se uma excelente guardiã e protetora de sua inquilina.
 Domiciana foi instalada em um quarto externo da casa. Dispunha de banheiro, fogão e pia de modo que podia preparar sua própria comida. Dorotéa assumiu o aluguel e as despesas, bem como manteve o seu salário, para completar a mísera aposentadoria burocrática.

Embarcamos para Friburgo e começamos vida nova. Por volta de 2011, Dorotéa iniciou a busca de um lugar definitivo e adequado para hospedar Domiciana, a esta altura com quase 90 anos e precisando, já, de atenção e cuidados especiais.
Foi quando se chegou ao LAJE – Lar Abrigo Amor a Jesus, uma  instituição modelar de Nova Friburgo, dedicada  ao cuidado de idosos, mantida a custa de doações, eventos sociais de caridade  e. sobretudo, da abnegação e sacrifício dos seus funcionários e administradores.
Feita a inscrição, era preciso aguardar uma vaga.

Sempre que íamos ao Rio, fazíamos uma visita a Domiciana.
Era preciso prepará-la para a mudança. Dorotéa começou a explicar-lhe que se tratava de um  parque, cheio de árvores, pássaros, lugares lindos onde poderia passear e conversar com seus amigos hóspedes. Que havia um refeitório grande e confortável com cinco refeições diárias. Que havia uma enfermaria e médico caso precisasse. Que havia cabelereiro e manicure. Que havia um lavanderia que lhe restituiria suas roupas limpas e cheirosas. E que, acima de tudo isso, ela contaria com o cuidado, o carinho, o amor e a dedicação de todos os enfermeiros, assistentes, administradores e ajudantes daquele mundo complexo que, num  trabalho incógnito e desinteressado, cuidava de idosos.

Em 12 de Maio de 2012, Domiciana recebeu sua vaga. Era preciso transferi-la. Seria um dia muito especial. Sempre que a visitávamos, quando falávamos no assunto, podíamos notar uma mudança no semblante que denotava a nostalgia da partida. Eu temia uma reação descontrolada. Então, me preparei.
Fomos recolhê-la em Mesquita. A primeira coisa que fiz foi sentá-la ao meu lado no banco do carro. Dorotéa ficou atrás, evitando assim que uma conversa entre ambas viesse perturbar a concentração da nossa protegida. Partimos. Durante um longo percurso eu mantive um silêncio respeitoso. Eu espiava Domiciana com o rabo do olho e compreendia sua angústia. Ser extirpada do ninho, arrancada de suas coisas, sua cama aconchegante, seu fogão, e até sua frigideira preferida, era aterrador.
Quando alcançamos a subida da Serra, achei que era chegado o momento de falar.

- “Domiciana, você está indo para um lugar muito especial. Ali você terá todo o conforto e segurança, e  Dorotéa e eu estaremos por perto, visitaremos você e . . .  bla . . .  bla . . . “
Expliquei-lhe tudo o que eu escrevi aí acima. Domiciana não deu uma palavra. Ora olhava a paisagem, ora o teto do carro.
Foi então que resolvi disparar a flecha definitiva:

- “Domiciana, esse lugar que você vai é tão  bom, mas tão bom, que eu mesmo também vou pra lá. Já pedi uma reserva e . . .”
Não pude continuar.

- “É mesmo ? Então o senhor vai no meu lugar ! Não,  Não, o senhor vai no meu lugar, eu posso esperar . . . “

 Domiciana chegou, instalou-se e em poucos dias já era conhecida de todos, dava palpite em tudo e estava ajudando nos trabalhos da lavanderia. O primeiro socorro que ela recebeu foi a ajuda de um enfermeiro que teve que retirá-la de um barranco onde havia caído quando fora colher abacates.
Nós íamos visitá-la com regularidade e cada visita era um divertimento. Ela conhecia a biografia de todo o mundo. Um dia, estávamos conversando no pátio quando um enfermeiro passou.

- “Vocês estão vendo esse aí ?  Ele não usa cueca !
- “Mas como é que você sabe, Domiciana ?
- “Ora, não tá vendo a calça dele afundada no rego da bunda? Aquilo é falta de cueca.”

O tempo passava. Um dia Dorotéa precisou fazer uma cirurgia. Ficou internada apenas três ou quatro dias, mas precisou ficar em repouso um par de semanas, o tempo suficiente para que Domiciana notasse a falta das nossas visitas Assim que pudemos, fomos lá. Não pude estacionar perto da entrada principal, então pedi a Dorotéa que entrasse e localizasse a Domiciana. Quando cheguei, estavam ambas no pátio, conversando animadamente. Cumprimentei Domiciana efusivamente. E ela, com a solenidade de quem vai revelar o segredo do Santo Graal, disse:

- “Oh, Seu Luis, a Dona Dorotéa me contou que fez uma operação pra tirar os ovários. Então o senhor vai ter que cortar o saco.”

Domiciana ! Domiciana !


Chegamos a 2020. Mês de Maio. Dia 17 último, recebemos um telefonema do LAJE com a notícia  de que Domiciana  tinha sido internada para um tratamento intensivo. Durante os dias subsequentes, Dorotéa tentou falar com ela. Não conseguiu. Estava inconsciente. Ficamos em contrição.

 No dia 27 de Maio Domiciana nos deixou. Foi singrar entre as núvens do Olimpo.

Requiem aeterna
dona eis Domine
et lux perpetuam
luceat eis
requiescat in pace
Amen


Repouso eterno
Dai-lhes Senhor
E a luz perpétua
os ilumine
Descansem em paz
Amém